14/11/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JEREMIAS – PARTE IX


E chegamos assim à última profissão acerca da qual vos quero falar. Galguei algumas que me deixaram más recordações, como quando fui peixeiro - cujo cheiro esteve impregnado durante meses por baixo das minhas unhas - ou toureiro - maldito animal que me invadiu a retaguarda.
Nunca vos contei, mas fui criado num meio bastante religioso. O meu pai acreditava que via Deus sempre que o fundo de uma garrafa qualquer se erguia diante do seu nariz. A minha mãe também acreditava que via Deus sempre que não via o meu pai. Durante anos ele disse “água-benta para o Chico, maravilha” sempre que emborcava um gole de álcool. Ainda hoje julgo que o conteúdo de cada recipiente de vidro era o seu espírito-santo. Enquanto decorria o mesmo período ela dizia “obrigada, meu Deus, por apareceres para o Chico sob a forma de vinho, assim enfia-lo num beco em vez de o enfiares na minha cama”.
Podem pensar que tive uma infância infeliz. A verdade é que não tive. Também é certo que não se deveu a eles, mas sim ao padre Cardoso, que foi um pai, um amigo, um irmão, um colega, um parceiro.
Foi ele, o padre Cardoso, que me iluminou o caminho.
Ainda era adolescente quando fui seu sacristão, a minha primeira profissão, aquela que desenvolvi durante mais tempo e que mais gostei de exercer.
As pequenas partes que compunham o todo eram divinais.
O incenso das missas, que mais fazia lembrar aqueles pauzinhos comprados na loja chinesa junto à igreja que a minha primeira amante acendia para disfarçar o cheiro a sexo selvagem praticado na cama em que também dormia o marido quando eu não estava lá. Chamava-se Jaciara.
O sabor das hóstias, feitas pelo padeiro que por acaso era marido da Jaciara. Quer dizer, segundo marido porque o primeiro estava a passar férias em Carandiru. Mais tarde até veio atrás dela para Portugal e tornou-se no melhor amigo do padeiro. Dizia que ela estava mais feliz do que no passado, tendo ficado grato ao homem. Ficaram amigos e o brasileiro acabou por instalar-se na casa do padeiro. Passados uns meses meteu o padeiro fora da sua própria casa quando descobriu que afinal não era ele quem fazia a mulher feliz mas sim um gajo vestido de branco. Era eu, claro, mas ele pensou que fosse o farmacêutico, que, por sua vez, nunca entendeu a razão pela qual o primeiro marido da Jaciara se revelava sempre tão simpático com ele - “talvez seja homossexual”, comentou ele certa vez comigo.
O vinho delicioso, que depois de eu e o padre Cardoso ficarmos até às tantas a mamar do gargalo fazia com que desvendássemos os segredos um do outro. Ele sabia os meus porque eu confessava-me semanalmente ou quando o pecado me tentava. Os desabafos dele é que me deixavam divertido. Quem diria que um homem com aquela santidade - chamemos-lhe assim - foi capaz de dar um valente coçório num vendedor de caixões por ter enganado uma família quanto à madeira usada no caixão do defunto ou de provocar um pequeno incêndio na própria igreja para que a seguradora metesse um chão novo - o resto era feito de pedra...?
As filas de gajas sequiosas por um consolo. Foi nesse tempo que deixei de ser esquisito se é que alguma vez o fui. Gaja é gaja quando não é não gaja da mesma forma que a água é água quando não é vinho. Bem, também pode ser sumo, cerveja e muitas outras coisas. Mas não interessa. Fica a ideia. Nessa altura eu era o consolo das gajas que não se sentiam gajas apesar de serem gajas. A verdade é que as comia por elas. Porque um mundo onde uma gaja não se sinta gaja é como uma videira sem uvas, uma cama sem lençóis ou uma praia sem areia. Existem, mas não é a mesma coisa. Portanto, eu era uma espécie de salvador da pátria, sendo eu o D. Sebastião e o gajedo paroquiano.
A bíblia, que tanto me ensinou, foi o meu suporte. A palavra do senhor sempre me acompanhou e é óptima para nos safarmos em qualquer situação. Se repararem há algo na bíblia que nos ajuda a sair de qualquer encrenca que seja.
Os conselhos do padre Cardoso. Ele é um gajo prático. Não fazem ideia.
Há tanta coisa que sinto falta dos tempos de sacristão que nem imaginam. O ordenado era irrisório mas havia sempre a caixa das esmolas para compor a coisa quando queria ir passar um fim de semana no Gerês ou arranjar a minha Casal Boss.
Foi também nessa altura que aprendi que podia ser tudo o que quisesse até que certo dia o padre Cardoso me disse “ergue as asas e voa, meu filho, que já estás a meter nojo”. Eu bati as asas com força e parti para longe, para bem longe da mira da caçadeira que o padre apontava na minha direcção.
Aquele Padre Cardoso... agora que penso melhor, acho que nunca gostei dele.






1 comentários:

Fernanda R-Mesquita disse...

Ah, ah, (Galguei algumas que me deixaram más recordações, como quando fui peixeiro - cujo cheiro esteve impregnado durante meses por baixo das minhas unhas - ou toureiro - maldito animal que me invadiu a retaguarda.)
Perfeito!