Indo directamente ao assunto: na minha opinião,o segredo do sucesso de Cristina Torrão reside nestes dois factos:
- Uma escrita “cinematográfica” – com poucas palavras consegue descrever uma cena, criando na mente do leitor uma imagem clara.
- Uma sensibilidade extraordinária para compreender e exprimir a alma humana; os seus personagens são tão “humanos” que o leitor se envolve com eles, vivendo as suas paixões, o seu sofrimento e as suas alegrias.
Neste livro, destacaria, neste aspecto a figura de D. Mafalda. É com mestria que a autora nos apresenta uma rainha melancólica, tímida, envergonhada e sofredora. A antítese daquilo que certamente imaginaríamos da esposa de Afonso Henriques (AH).
Este livro é um verdadeiro exemplo do que deve ser um romance histórico porque consegue construir uma dramatização dos factos sem manchar a verdade histórica, ao mesmo tempo que revela uma especial sensibilidade na abordagem da dimensão psicológica na caracterização dos personagens.
No início da obra, destaca-se um certo contraste entre D. Teresa e Afonso Henriques. D. Teresa é teimosa, fria e calculista: três características de um bom e também de um mau governante, conforme as circunstâncias. No entanto, AH revela desde cedo qualidades herdadas da mãe, na sua determinação face aos objectivos assumidos mas reforçadas por uma inteligência rara e, acima de tudo, pela importância capital de três conselheiros: Ermígio Moniz, seu irmão Egas Moniz e o arcebispo de Braga, D. João Peculiar. Foram estes homens conseguiram temperar a determinação por vezes exagerada de AH com a flexibilidade necessária para se adequar a cada contexto específico. Por outro lado, o primeiro rei revela uma bondade natural que lhe permitia aquela magnanimidade própria de um grande soberano.
Ao longo de toda a obra, CT desfaz-nos vários pré-conceitos, herdados do senso comum e de tradições literárias e cinematográficas. Por exemplo, ao contrário do que se pensa, a maior parte dos confrontos nas batalhas medievais não envolviam o uso da espada, considerada uma arma frágil mas sim os rudes e sangrentos machados e maças.
Outro mito que se desfaz é o de Egas Moniz: ele não foi o aio humilde que se apresentou de corda ao pescoço, oferecendo a sua vida ao rei de Leão. Foi muito mais que isso; foi um nobre cheio de honra e inteligência que esteve por trás de algumas das mais importantes façanhas de AH.
Em relação a alguns aspectos mais controversos da vida de AH, em que a historiografia não dá respostas definitivas, CT contorna-os habilmente: o local de nascimento de AH, a localização exacta da batalha de S. Mamede ou a “prisão” de D. Teresa no Castelo de Lanhoso. Isto demonstra como num romance histórico é, por vezes, tão importante o que se escreve como aquilo que não se escreve.
Este livro encanta também pela singeleza e humanidade com que são descritos alguns aspectos da vida de AH: a sua primeira experiencia sexual, fazendo compras com os amigos na feira de Tui, galanteasndo as “moças” ou uma imagem que perdurará na minha mente de leitor: AH abraçado às suas filhas, ainda crianças, no enterro do seu filho varão, Henrique. Aliás é enternecedora a forma como CT nos apresenta este D. Afonso Henriques como pai extremoso e sentimental.
Um aspecto que sempre incomodou qualquer aluno ou estudioso da História de Portugal é a forma como AH conseguiu desafiar o poder de um rei poderoso a quem ele devia obediência (o rei de Leão, Afonso VII). CT oferece-nos uma visão credível e bela: em grande parte a paz com Castela ficou a dever-se à habilidade desse grande conselheiro que foi Egas Moniz. Só ele foi capaz de moderar as ambições e a agressividade do nosso primeiro rei, levando-o a voltar os seus intentos bélicos para o sul, para o território dos Mouros.
Outro aspecto muito importante, muito bem explanado por CT é este: o nascimento de Portugal está umbilicalmente ligado à afirmação da diocese de Braga face a Santiago de Compostela e a Toledo, capital hispânica da cristandade. Ao longo do livro é notória a influência do arcebispo de Braga, D. João Peculiar, ao ponto de ter sido ele, por exemplo, a negociar o casamento com D. Mafalda de Sabóia. Por outro lado, foi no intuito de afirmar o poder do arcebispado de Braga que D. João Peculiar travou uma luta incansável e brilhante para o reconhecimento da soberania de AH como rei. Esta ligação íntima entre os poderes temporal e espiritual ajuda-nos a compreender a importância excepcional do clero português, tanto a nível político como económico. Na verdade, Mosteiros e Dioceses acabaram por acumular património, devido a sucessivas doações, tanto de AH como dos seus sucessores.
Ao mesmo tempo, começa a definir-se uma certa bipolarização Norte/Sul no território português. A génese deste fenómeno encontra-se precisamente da guerra da Reconquista, nomeadamente no reinado do fundador da nacionalidade: o norte dominado pelas grandes famílias de senhores terratenentes e o sul onde ganham raízes as comunidades de homens livres, os concelhos.
Assim, os guerreiros do sul, os cavaleiros vilões em quem AH se apoiou para retirar poder aos barões do Norte, fazem com que AH vista a pele do “caudilho”, mais do que do “general”, para usar as palavras do maior historiador português deste período, José Mattoso, na sua biografia de Afonso Henriques. Ele nunca foi um general de grandes exércitos; na maior parte dos casos liderava autênticos bandos de populares mais interessados no saque do que na Guerra Santa. Os próprios Cruzados, que foram decisivos na conquista de Lisboa pouco mais eram do que salteadores e violadores de donzelas. Da mesma forma foi Geraldo Sem Pavor, um líder popular que se tornou o maior aliado de AH nas suas últimas conquistas, como Évora e Beja.
De tudo o que aqui escrevi, não é difícil perceber que considero esta obra brilhante! Mas gostava de finalizar este comentário com a referência a um episódio que bem demonstra o espírito da obra e que é, a meu ver, um dos pontos mais altos da narrativa: o momento em que Afonso Henriques, gravemente ferido no desastre de Badajoz, é assistido por um brilhante físico (médico) muçulmano. Nesse momento, AH reconhece o absurdo da guerra religiosa, comprometendo-se perante a sua consciência a respeitar a população muçulmana. Como diz a autora na nota inicial do livro, “guerras de índole religiosa não fazem o mínimo sentido”. No fundo, mau grado as aparências, talvez AH concordasse…
Também publicado em http://aminhaestante.blogspot.com/
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