21/05/2012

Comentários leitura conjunta "A Fenda" de Doris Lessing



Manuel Cardoso
A Fenda é um livro profundo e complexo. Mais do que uma narrativa, é uma reflexão sobre a importância das relações entre homens e mulheres na origem e evolução da humanidade.
O enredo é narrado por um aristocrata romano do tempo de Nero.
A visão feminista de Lessing, de uma forma muito inteligente, começa por fazer uma ligação clara entre a mulher e a terra: a Fenda é uma referência à anatomia feminina mas também a um acidente geográfico do local onde vivia a comunidade: uma fenda sagrada, onde eram executados sacrifícios sagrados.
Uma comunidade primitiva, estranhamente composta apenas por mulheres dava à luz sem intervenção masculina. Todos os bebés assim gerados eram do sexo feminino. Até que um dia acontece o impensável: nasce um rapaz. Ou melhor, um Monstro, como lhe chamaram, devido a certas protuberâncias anatómicas que exibia. Essa anatomia levou a que os Monstros fossem também conhecidos pelos Esguichos. Estava quebrado o equilíbrio. Em breve se gerou uma nova comunidade, só de Esguichos e começa a odisseia das relações entre os dois grupos; uma relação que evoluirá entre o encantamento e a “guerra dos sexos”.
Esta visão mais ou menos histórica da origem da humanidade levar-nos-ia, pela lógica das cronologias, ao Paleolítico; no entanto, todas as pistas que Lessing nos deixa sobre essa cronologia, levam o leitor a situar o enredo nos primórdios da civilização grega. De facto, muitas das realidades descritas têm como referentes claros alguns aspetos da mitologia grega. Por exemplo:
- a época em que só as mulheres (Fendas) representavam a espécie humana é vista como uma espécie de “Idade do Ouro” primordial.
- as águias são encarregadas de transportar os rapazes para a comunidade masculina, logo que nasciam das Fendas. Este papel vai-se tornando, ao longo do livro, o de justiceiras, apelando sem dúvida para a águia do mito de Prometeu.
- A comunidade feminina faz lembrar o episódio da fuga para a ilha de Lesbos por parte das mulheres de Atenas.
- Os sacrifícios rituais e a morte dos bebés rapazes praticada pelas Fendas tradicionalistas faz referência à tradição de infanticídio nalgumas comunidades gregas primitivas, sendo a de Esparta a mais conhecida.
Globalmente, parece nítida a visão feminista desta obra. Pessoalmente, penso que Lessing vai muito além disso. O bucolismo e a ausência de um conceito de moral à maneira romana ou judaico-cristã colocam esta comunidade primitiva sob uma moral natural que contrasta claramente com o mundo vivenciado pelo narrador, um Romano que, ainda assim, considera a sua sociedade como “devassa”. Quer dizer, Lessing parece encarar a história da humanidade como um caminho desde essa moral natural até às formas mais modernas de moralismo.
As “Velhas Elas”, conservadoras, têm nessa comunidade um papel fundamental como elemento conservador da sociedade; no entanto o seu poder é claramente posto em causa pelas mulheres jovens e as relações mais abertas com a comunidade masculina acabam por triunfar.
Por outro lado, temos a importante questão do poder: depois de se tornar real a união entre as comunidades de homens e mulheres, o primeiro líder é um homem. E todos, incluindo as mulheres, aceitam o seu poder de uma forma natural. No entanto, por mais poder que esse homem tenha, ele vive atormentado por uma dúvida permanente: “o que vai ela pensar disto?”

Paula Teixeira
Doris Lessing apresenta-nos uma narrativa que teve como base um artigo científico que apontava a “probalidade de a estirpe humana básica e primordial ser feminina e de o aparecimento do homem ser mais tardio”. Assim, esta história mostra-nos como teria sido o nascimento da humanidade baseado naquela verdade.
Há a apresentação de um documento muito valioso, um documento que pode ser comparável à nossa bíblia e que explica a origem de tudo, é de salientar que também omite tudo o que a humanidade se envergonha. Neste documento estava o registo da origem das primeiras mulheres “Fendas”.
A fenda simboliza claramente a mulher. No início dos tempos, só havia fendas que engravidavam consoante o ciclo da lua e davam à luz outras fendas. Até que algo inesperado acontece - um dia, uma delas dá à luz um “monstro” (um bebé do sexo masculino). Até que estas mulheres se acostumem àquele novo ser, aquele que detém o tubo, que não é capaz de engravidar, mas que é indispensável para a procriação, algumas “eras” vão passar. Então, a necessidade, a curiosidade, vai originar a socialização entre ambos os sexos. Doris Lessing descreve toda esta relação de forma peculiar e muito própria.
Porém, há a realçar que apesar da autora enaltecer as mulheres como seres superiores, com poder de dar à luz e de colocar o homem sempre em segundo plano, no decorrer da história apercebemo-nos que estas são vãs, frias, vazias e sobretudo passivas! Não são seres detentores de pensamento (pelo menos no início dos tempos).
Os homens (os monstros, os tubos, os esguichos) um género cujo documento científico alega falta de solidez feminina é, na narrativa, um ser curioso, tem o poder de desembaraço e do desenrasque.
O Homem apesar de rebaixado pela mulher é o que no fundo está mais desenvolvido enquanto ser pensante.
Sendo tal documento científico verídico, haviam os homens de dar sempre “a volta por cima”. Deste modo, podemos verificar que na nossa história da bíblia, o homem surge primeiro, a mulher depois.
O Homem é visto como aquele que tem a força e a inteligência. A mulher durante décadas foi vista como um ser inferior (em certos países ainda assim é).
No registo “A Fenda”, a mulher nasce primeiro, deveria ter força, perspicácia, astúcia… mas não! É passiva, os homens são os mais fortes,aqueles que pensam…

Assim, acho que podemos concluir que na história da humanidade, quer nascessem primeiro os homens ou as mulheres, aqueles haviam sempre de fazer com que a sua masculinidade prevalece-se sobre a mulher… Será isto que nos tenta mostrar Doris Lessing? Foi assim que eu o entendi :D

Foi o primeiro livro que li da autora, gostei!

Ana Nunes
A leitura deste livro há muito que me intrigava, tanto pela premissa como pelo facto de a Doris Lessing ter ganho o Nobel da Literatura no ano em que publicou este livro (além deste prémio ganhou muitos outros com a sua extensa obra).

A história em si é narrada quase como um artigo jornalístico, tentando apoiar-se em "factos" mas ainda assim tomando algumas liberdades históricas. E se por um lado isto faz com que nos pareça mais verossímil a existência de um tal passado, também acaba por distanciar o leitor da trama central impedindo que crie um elo com os acontecimentos e também com as personagens que são, até certo ponto, indistintas umas das outras.
Pessoalmente isto não me incomodou, até porque se lê quase como um ensaio mitológico, mas senti falta de uma maior proximidade com os acontecimentos.
Por outro lado temos, para além da história central sobre como o mundo começou com as mulheres, temos também a história do narrador, um homem que vive na Roma Antiga e que protagoniza (ou narra) algumas das melhores partes do livro, talvez porque nestas partes existe uma maior proximidade (são história pessoais).
A história em si tem pontos altos e pontos baixos. Algumas cenas parecem desencadear-se a passo de caracol, enquanto outras passam a correr, mas no geral pareceu-me que a história estava muito bem encadeada e pensada, com algumas parte muito bem conseguidas.

Apesar da premissa do livro, achei sinceramente que esta história não era feminista (ou não tanto como esperava) o que veio a mostrar-se uma mais-valia. Aqui tanto as mulheres como os homens como têm falhas grosseiras, produto da mentalidade e vivências da época e dessa forma não senti que a autora estivesse a ser mais ou menos depreciativa com qualquer dos sexos. No entanto esse parece não ser o consenso geral, já que por norma os homens parecem sentir que este livro é feminista (verdade ou não?).

Das personagens quase nada poderá ser dito pois há excepção de uma ou outra que se destacam, a história é contada com um sentido de comunidade e não de um ser único o que é compreensível mas que não permite um conhecimento profundo das personagens que protagonizam algumas das maiores mudanças. Nem Horsa, Maronna, Astre ou a Maire podem ser consideradas personagens, já que o próprio narrador diz que estes são nomes que podem (e devem) significar várias pessoas ao longo das Eras, o que as torna indistinguíveis umas das outras.

No geral foi um livro cuja leitura me agradou e se mostrou mais interessante do que esperava (depois de ver aquela classificação depreciativa). Apesar de sentir que teria gostado muito mais do livro caso o tom narrativo não fosse tão impessoal, também foi isso em parte que me manteve atenta á leitura, já que o interpretei quase como histórico e não fantasia. A história em si também tem algumas mensagens curiosas e nas quais vale a pena reflectir, tanto para as mulheres como para os homens. Definitivamente este livro não é tão mau como o pintam e tem algumas partes muito curiosas.

Ângelo Marques

"Vi isto hoje.
Quando as carroças vão chegando da herdade à medida que o verão se finda, trazendo o vinho, as azeitonas, as frutas, um ar festivo inunda a casa, e eu participo dele. Das minhas janelas observo os escravos da casa, enquanto se põem à escuta, à espera de ouvir o rangido da carroça que os bois vêm a puxar na curva da estrada."

Partindo de um pressuposto em que no inicio da humanidade só existia um género sexual da estripe humana, nesta caso o feminino, designadas pelas Fendas, estas procriavam sob o ciclo da lua, ou talvez devido a outro acontecimento, onde o aparecimento do "fluxo vermelho" aparentemente era o causador da engravidez das Fendas, que originalmente e durante varias eras (uma era como um ciclo temporal semelhante a um ano, uma decada, um seculo) somente davam à luz Fendas. Estas Fendas tinham um comportamento muito singular por exemplo não choravam era sossegadas sem birras uns anjinhos.
Esta comunidade vivia em grutas, grutas banhadas a seus pés pelo vasto oceano, devido a isso as fendas era eximias nadadoras e estavam organizadas consuante as suas actividades (i.e. auxiliar da água, apanhadora de peixes, etc...) e como "orientadoras" dessas Fendas "menores" existiam as Velhas Elas que imponham a sua ordem.
Então um dia uma Fenda dá à luz um bebé do sexo masculino, um Monstro ou um Esguicho com foram designados pelas Fendas, este nascimento também surge muito nubloso sem algum tipo de orientação ou justificação. Os primeiros Monstros são mutilados e oferecidos às águias para que estas os matem. Este ritual mantém-se durante eras.

Marie uma Fenda inquieta (só a atitude de se auto chamar Marie é considerado um ato de rebeldia pelas Velhas Elas) decide um dia explorar para alem das montanhas e descobre ai uma comunidade repleta de monstros a sua curiosidade impele-a a ir ter com os Monstros. É violada e dessa violação nasce uma Fenda, e toda a relação entre Fendas e Monstros é alterada.

Doris Lessing parte de um tema interessante e que bem explorado daria uma enciclopédia universal, isto do ovo e da galinha tem destas coisas. A narrativa foi deixada, e na minha opinião nada inocente, a um Romano com pretensões de ser senador. São várias a analogias entre estes dois universos, o criado por Lessing e o universo Romano ex: "Não eram como os nossos meninos mimados, sempre debaixo do olhar atento dos seus escravos.. (pág.. 127)", D. Lessing impõe uma certa nudez nas características básicas humanas, tem o condão de fazer com que os homens sintam este livro escrito por uma feminista, que luta pelos seus ideais, tal como as mulheres sentem um certo desrespeito pela sua identidade feminina tal como são descritas no livro. Eu senti uma escrita feminista "pura" (implicância minha), mas lá no fundo penso que terá sido esse objectivo de D. Lessing, e digo isto devido a passagens deste tipo; "Eles nasceram normais, mas depois parece que não pensam noutra coisa senão nos esguichos (pág.. 128) " ou então "ao fim de tantos meses passados na companhia dos homens, já se tinham esquecido que as mulheres significavam, calor e generosidade. (pág.. 203)", mas também entendo um certo amargo das mulheres quando são descritas com uma leviandade uma falta de sentido explorador, falta de sentido criativo, D. Lessing cria assim o efeito adverso ao feminista (mas isto só o descobri depois de falar-mos abertamente do livro em grupo), não entendo ou não concordo com uma certa predominância física masculina, pois penso que as Fendas, pelo apresentado, teriam um porte substancialmente "mais bem" constituído que os monstros.

Não é um livro fácil de ler, uma escrita muito repetitiva nas ideias centrais e nada fluida tornam o livro pouco acolhedor, repleto de lacunas e interrogações que lhe dão um colorido diferente mas que não chega para saciar as dúvidas, assim um livro que recomendo com muitas reservas.

2 comentários:

Paula disse...

Olá Angelo, ultimamente tenho preferido esse tipo de livro, que foge um pouco ao comum :P
Gostei muito desta obra. É certo que a leitura não é fácil, mas "abana" o nosso pensamento e isso é bom :)

Ângelo Marques disse...

Olá Paula, sabes que depois do clube de leituras Bertrand onde esta obra foi abordada mudei ligeiramente a minha opinião, penso que aprendi a ler o livro com outras experiências pessoais :), mas mesmo assim a base fica, a essência do gosto vs. não gosto que advém do nosso intimo não altera, pode ser ligeiramente mutável.
Mas sempre gostei deste tipo de livros que questionam paradigmas básicos da sociedade.