Manuel Cardoso
A Fenda é um livro profundo e complexo. Mais do que uma
narrativa, é uma reflexão sobre a importância das relações entre homens e
mulheres na origem e evolução da humanidade.
O enredo é narrado por um aristocrata romano do tempo de
Nero.
A visão feminista de Lessing, de uma forma muito
inteligente, começa por fazer uma ligação clara entre a mulher e a terra: a
Fenda é uma referência à anatomia feminina mas também a um acidente geográfico
do local onde vivia a comunidade: uma fenda sagrada, onde eram executados
sacrifícios sagrados.
Uma comunidade primitiva, estranhamente composta apenas
por mulheres dava à luz sem intervenção masculina. Todos os bebés assim gerados
eram do sexo feminino. Até que um dia acontece o impensável: nasce um rapaz. Ou
melhor, um Monstro, como lhe chamaram, devido a certas protuberâncias
anatómicas que exibia. Essa anatomia levou a que os Monstros fossem também
conhecidos pelos Esguichos. Estava quebrado o equilíbrio. Em breve se gerou uma
nova comunidade, só de Esguichos e começa a odisseia das relações entre os dois
grupos; uma relação que evoluirá entre o encantamento e a “guerra dos sexos”.
Esta visão mais ou menos histórica da origem da
humanidade levar-nos-ia, pela lógica das cronologias, ao Paleolítico; no entanto,
todas as pistas que Lessing nos deixa sobre essa cronologia, levam o leitor a
situar o enredo nos primórdios da civilização grega. De facto, muitas das
realidades descritas têm como referentes claros alguns aspetos da mitologia
grega. Por exemplo:
- a época em que só as mulheres (Fendas) representavam a
espécie humana é vista como uma espécie de “Idade do Ouro” primordial.
- as águias são encarregadas de transportar os rapazes
para a comunidade masculina, logo que nasciam das Fendas. Este papel vai-se
tornando, ao longo do livro, o de justiceiras, apelando sem dúvida para a águia
do mito de Prometeu.
- A comunidade feminina faz lembrar o episódio da fuga
para a ilha de Lesbos por parte das mulheres de Atenas.
- Os sacrifícios rituais e a morte dos bebés rapazes
praticada pelas Fendas tradicionalistas faz referência à tradição de
infanticídio nalgumas comunidades gregas primitivas, sendo a de Esparta a mais
conhecida.
Globalmente, parece nítida a visão feminista desta obra.
Pessoalmente, penso que Lessing vai muito além disso. O bucolismo e a ausência
de um conceito de moral à maneira romana ou judaico-cristã colocam esta
comunidade primitiva sob uma moral natural que contrasta claramente com o mundo
vivenciado pelo narrador, um Romano que, ainda assim, considera a sua sociedade
como “devassa”. Quer dizer, Lessing parece encarar a história da humanidade
como um caminho desde essa moral natural até às formas mais modernas de
moralismo.
As “Velhas Elas”, conservadoras, têm nessa comunidade um
papel fundamental como elemento conservador da sociedade; no entanto o seu
poder é claramente posto em causa pelas mulheres jovens e as relações mais
abertas com a comunidade masculina acabam por triunfar.
Por outro lado, temos a importante questão do poder:
depois de se tornar real a união entre as comunidades de homens e mulheres, o
primeiro líder é um homem. E todos, incluindo as mulheres, aceitam o seu poder
de uma forma natural. No entanto, por mais poder que esse homem tenha, ele vive
atormentado por uma dúvida permanente: “o que vai ela pensar disto?”
Paula Teixeira
Doris Lessing apresenta-nos uma narrativa que teve como
base um artigo científico que apontava a “probalidade de a estirpe humana
básica e primordial ser feminina e de o aparecimento do homem ser mais tardio”.
Assim, esta história mostra-nos como teria sido o nascimento da humanidade
baseado naquela verdade.
Há a apresentação de um documento muito valioso, um
documento que pode ser comparável à nossa bíblia e que explica a origem de
tudo, é de salientar que também omite tudo o que a humanidade se envergonha.
Neste documento estava o registo da origem das primeiras mulheres “Fendas”.
A fenda simboliza claramente a mulher. No início dos
tempos, só havia fendas que engravidavam consoante o ciclo da lua e davam à luz
outras fendas. Até que algo inesperado acontece - um dia, uma delas dá à luz um
“monstro” (um bebé do sexo masculino). Até que estas mulheres se acostumem
àquele novo ser, aquele que detém o tubo, que não é capaz de engravidar, mas
que é indispensável para a procriação, algumas “eras” vão passar. Então, a
necessidade, a curiosidade, vai originar a socialização entre ambos os sexos.
Doris Lessing descreve toda esta relação de forma peculiar e muito própria.
Porém, há a realçar que apesar da autora enaltecer as
mulheres como seres superiores, com poder de dar à luz e de colocar o homem
sempre em segundo plano, no decorrer da história apercebemo-nos que estas são
vãs, frias, vazias e sobretudo passivas! Não são seres detentores de pensamento
(pelo menos no início dos tempos).
Os homens (os monstros, os tubos, os esguichos) um género
cujo documento científico alega falta de solidez feminina é, na narrativa, um
ser curioso, tem o poder de desembaraço e do desenrasque.
O Homem apesar de rebaixado pela mulher é o que no fundo
está mais desenvolvido enquanto ser pensante.
Sendo tal documento científico verídico, haviam os homens
de dar sempre “a volta por cima”. Deste modo, podemos verificar que na nossa
história da bíblia, o homem surge primeiro, a mulher depois.
O Homem é visto como aquele que tem a força e a
inteligência. A mulher durante décadas foi vista como um ser inferior (em
certos países ainda assim é).
No registo “A Fenda”, a mulher nasce primeiro, deveria
ter força, perspicácia, astúcia… mas não! É passiva, os homens são os mais
fortes,aqueles que pensam…
Assim, acho que podemos concluir que na história da
humanidade, quer nascessem primeiro os homens ou as mulheres, aqueles haviam
sempre de fazer com que a sua masculinidade prevalece-se sobre a mulher… Será
isto que nos tenta mostrar Doris Lessing? Foi assim que eu o entendi :D
Foi o primeiro livro que li da autora, gostei!
Ana Nunes
A leitura deste livro há muito que me intrigava, tanto
pela premissa como pelo facto de a Doris Lessing ter ganho o Nobel da
Literatura no ano em que publicou este livro (além deste prémio ganhou muitos
outros com a sua extensa obra).
A história em si é narrada quase como um artigo
jornalístico, tentando apoiar-se em "factos" mas ainda assim tomando
algumas liberdades históricas. E se por um lado isto faz com que nos pareça
mais verossímil a existência de um tal passado, também acaba por distanciar o
leitor da trama central impedindo que crie um elo com os acontecimentos e
também com as personagens que são, até certo ponto, indistintas umas das
outras.
Pessoalmente isto não me incomodou, até porque se lê
quase como um ensaio mitológico, mas senti falta de uma maior proximidade com
os acontecimentos.
Por outro lado temos, para além da história central sobre
como o mundo começou com as mulheres, temos também a história do narrador, um
homem que vive na Roma Antiga e que protagoniza (ou narra) algumas das melhores
partes do livro, talvez porque nestas partes existe uma maior proximidade (são
história pessoais).
A história em si tem pontos altos e pontos baixos.
Algumas cenas parecem desencadear-se a passo de caracol, enquanto outras passam
a correr, mas no geral pareceu-me que a história estava muito bem encadeada e
pensada, com algumas parte muito bem conseguidas.
Apesar da premissa do livro, achei sinceramente que esta
história não era feminista (ou não tanto como esperava) o que veio a mostrar-se
uma mais-valia. Aqui tanto as mulheres como os homens como têm falhas
grosseiras, produto da mentalidade e vivências da época e dessa forma não senti
que a autora estivesse a ser mais ou menos depreciativa com qualquer dos sexos.
No entanto esse parece não ser o consenso geral, já que por norma os homens
parecem sentir que este livro é feminista (verdade ou não?).
Das personagens quase nada poderá ser dito pois há
excepção de uma ou outra que se destacam, a história é contada com um sentido
de comunidade e não de um ser único o que é compreensível mas que não permite
um conhecimento profundo das personagens que protagonizam algumas das maiores
mudanças. Nem Horsa, Maronna, Astre ou a Maire podem ser consideradas
personagens, já que o próprio narrador diz que estes são nomes que podem (e
devem) significar várias pessoas ao longo das Eras, o que as torna
indistinguíveis umas das outras.
No geral foi um livro cuja leitura me agradou e se
mostrou mais interessante do que esperava (depois de ver aquela classificação
depreciativa). Apesar de sentir que teria gostado muito mais do livro caso o
tom narrativo não fosse tão impessoal, também foi isso em parte que me manteve
atenta á leitura, já que o interpretei quase como histórico e não fantasia. A
história em si também tem algumas mensagens curiosas e nas quais vale a pena
reflectir, tanto para as mulheres como para os homens. Definitivamente este
livro não é tão mau como o pintam e tem algumas partes muito curiosas.
Ângelo Marques
"Vi isto hoje.
Quando as carroças vão chegando da herdade à medida que o
verão se finda, trazendo o vinho, as azeitonas, as frutas, um ar festivo inunda
a casa, e eu participo dele. Das minhas janelas observo os escravos da casa,
enquanto se põem à escuta, à espera de ouvir o rangido da carroça que os bois
vêm a puxar na curva da estrada."
Partindo de um pressuposto em que no inicio da humanidade
só existia um género sexual da estripe humana, nesta caso o feminino,
designadas pelas Fendas, estas procriavam sob o ciclo da lua, ou talvez devido
a outro acontecimento, onde o aparecimento do "fluxo vermelho"
aparentemente era o causador da engravidez das Fendas, que originalmente e
durante varias eras (uma era como um ciclo temporal semelhante a um ano, uma
decada, um seculo) somente davam à luz Fendas. Estas Fendas tinham um
comportamento muito singular por exemplo não choravam era sossegadas sem birras
uns anjinhos.
Esta comunidade vivia em grutas, grutas banhadas a seus
pés pelo vasto oceano, devido a isso as fendas era eximias nadadoras e estavam
organizadas consuante as suas actividades (i.e. auxiliar da água, apanhadora de
peixes, etc...) e como "orientadoras" dessas Fendas
"menores" existiam as Velhas Elas que imponham a sua ordem.
Então um dia uma Fenda dá à luz um bebé do sexo
masculino, um Monstro ou um Esguicho com foram designados pelas Fendas, este
nascimento também surge muito nubloso sem algum tipo de orientação ou
justificação. Os primeiros Monstros são mutilados e oferecidos às águias para
que estas os matem. Este ritual mantém-se durante eras.
Marie uma Fenda inquieta (só a atitude de se auto chamar
Marie é considerado um ato de rebeldia pelas Velhas Elas) decide um dia
explorar para alem das montanhas e descobre ai uma comunidade repleta de
monstros a sua curiosidade impele-a a ir ter com os Monstros. É violada e dessa
violação nasce uma Fenda, e toda a relação entre Fendas e Monstros é alterada.
Doris Lessing parte de um tema interessante e que bem
explorado daria uma enciclopédia universal, isto do ovo e da galinha tem destas
coisas. A narrativa foi deixada, e na minha opinião nada inocente, a um Romano
com pretensões de ser senador. São várias a analogias entre estes dois
universos, o criado por Lessing e o universo Romano ex: "Não eram como os
nossos meninos mimados, sempre debaixo do olhar atento dos seus escravos..
(pág.. 127)", D. Lessing impõe uma certa nudez nas características básicas
humanas, tem o condão de fazer com que os homens sintam este livro escrito por
uma feminista, que luta pelos seus ideais, tal como as mulheres sentem um certo
desrespeito pela sua identidade feminina tal como são descritas no livro. Eu
senti uma escrita feminista "pura" (implicância minha), mas lá no
fundo penso que terá sido esse objectivo de D. Lessing, e digo isto devido a
passagens deste tipo; "Eles nasceram normais, mas depois parece que não
pensam noutra coisa senão nos esguichos (pág.. 128) " ou então "ao
fim de tantos meses passados na companhia dos homens, já se tinham esquecido
que as mulheres significavam, calor e generosidade. (pág.. 203)", mas
também entendo um certo amargo das mulheres quando são descritas com uma leviandade
uma falta de sentido explorador, falta de sentido criativo, D. Lessing cria
assim o efeito adverso ao feminista (mas isto só o descobri depois de falar-mos
abertamente do livro em grupo), não entendo ou não concordo com uma certa
predominância física masculina, pois penso que as Fendas, pelo apresentado,
teriam um porte substancialmente "mais bem" constituído que os
monstros.
Não é um livro fácil de ler, uma escrita muito repetitiva
nas ideias centrais e nada fluida tornam o livro pouco acolhedor, repleto de
lacunas e interrogações que lhe dão um colorido diferente mas que não chega
para saciar as dúvidas, assim um livro que recomendo com muitas reservas.
2 comentários:
Olá Angelo, ultimamente tenho preferido esse tipo de livro, que foge um pouco ao comum :P
Gostei muito desta obra. É certo que a leitura não é fácil, mas "abana" o nosso pensamento e isso é bom :)
Olá Paula, sabes que depois do clube de leituras Bertrand onde esta obra foi abordada mudei ligeiramente a minha opinião, penso que aprendi a ler o livro com outras experiências pessoais :), mas mesmo assim a base fica, a essência do gosto vs. não gosto que advém do nosso intimo não altera, pode ser ligeiramente mutável.
Mas sempre gostei deste tipo de livros que questionam paradigmas básicos da sociedade.
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