Desengane-se quem foi vítima do
mito: este não é um livro difícil de ler nem um livro chato.
É uma obra-prima absolutamente
notável.
Na minha modesta opinião, um dos
melhores livros da história da humanidade, capaz de ombrear, em qualidade
literária com D. Quixote de Cervantes, Os Irmãos Karamazov de Dostoievski ou
Guerra e Paz de Tolstoi.
Se tivesse de fazer um top ten dos
melhores livros que li até hoje, este teria de lá figurar.
A profundidade dos assuntos tratados
e toda a riqueza de conteúdo desta obra monumental levam-
me a dividir o meu comentário em
três partes:
1- A magia da montanha
Lá em cima, no topo de uma montanha suíça,
há um sanatório onde tudo é relativo, a começar pelo tempo. Hans Castorp
esperava demorar 3 semanas, esperando o primo, Joachim. Mas lá o tempo passa
mais devagar. O tempo é uma noção vaga, subjetiva. Da mesma forma o espaço: as
montanhas que impressionam Hans são vulgares para Joachim. Os contrastes
culminam com a atitude perante a morte: trivial para um, estranha para o outro.
Morrer naquelas montanhas era, afinal, o mais comum.
Hospedado numa cama que fora leito
de morte no dia anterior, Hans resiste ao drama reagindo com humor à desgraça
dos outros. O riso como fuga e como marca do contraste entre a vida e a morte.
É nesse leito que foi de morte que Hans recorda a infância, apelando a memórias
que marcam a venerações pelas tradições da família e da pátria alemã.
Essas memórias ensinaram a Hans que
a morte não é o fantasma terrífico; é um momento solene a quem a religião dá um
tom de naturalidade. O drama é apenas corporal, material. O espírito prevalece.
O riso perante a morte é uma
constante na montanha. Como se a morte libertasse os homens do mundo ordinário em
que vivem: o internado Albin brinca com uma faca e um revólver: uns riem, outros agem com naturalidade,
outros ainda, entram em pânico. Serão essas as 3 reações típicas perante a
morte? Outro exemplo brilhante é o daquela personagem que emite assobios graças
a um orifício artificial que lhe fizeram no pulmão. A cena é tornada cómica a
partir de uma situação dramática - o riso paredes meias com a dor.
A Montanha Mágica está também
povoada pela arte de dar significado a todos os pormenores, sem cair no exagero
descritivo.
Lentamente, a doença torna-se um
estado de afastamento do corpo, que facilita o trabalho do espírito - “deveria
estar menos sadio do que aparenta, porque, evidentemente, possui espírito”.
A propósito da visita de Hans,
afirmava o médico: “três semanas são como uma visita de médico; nem vale a pena
tirar o casaco por tão pouco tempo.” Sempre, a relatividade do tempo. Este
parece ser um dos temas centrais da obra. Essa é parte da magia daquela
montanha: o tempo que, pela monotonia dos dias devia avançar mais depressa,
corria rapidamente, como se não se desse por ele. A relatividade do tempo e a
forma imperial como ele subjuga a vida humana está bem patente na própria
estrutura da obra: os capítulos vão sendo cada vez mais longos e o tempo cronológico
da ação vai-se transformando: no início um curto espaço de tempo preenche
dezenas de páginas, ao passo que no final da obra meses e anos vão passando,
por vezes num único subcapítulo.
2- Naphta e Setembrini ou o choque de titãs
Settembrini é um personagem
fundamental neste livro. Italiano, homem do sul, ele é sonhador, muito crítico,
lutador pela liberdade. Talvez o contraponto com o espírito alemão. Ele é, sem
dúvida nenhuma, o representante do lado otimista do ser humano, da visão
crítica e livre da existência. Para ele, a vontade e a força humana (haverá
algo de Schopenhauer?) são capazes de enfrentar qualquer poder e a própria
natureza, apontando como exemplo a forma como Voltaire se recusou a aceitar o
terramoto de 1755. Não é, no entanto, um hedonista; é um humanista que defende
o primado do espírito. Mas um espírito livre, longe do “obscurantismo cristão”.
Ele é o único que aconselha Hans a abandonar o sanatório. Muito crítico em
relação à medicina, ele considera que Hans tem de optar pela liberdade.
No entanto, a prisão de Hans já não
é só o sanatório; é também Clavdia. A sua paixão começa precisamente quando
adoece. O amor surge associado à doença e à tristeza: “Le corps, l’amour, la
mort, ces trois ne font qu’un », diz Clavdia. T. Mann introduz aqui uma
forte imagem simbólica: a recordação que Hans guardará de Clavdia será a sua
radiografia.
À medida que a obra avança, o tempo
vai-te tornando uma obsessão; o drama da sucessão dos anos, o ritmo das
estações do ano; a nostalgia de um verão em que os dias vão sendo cada vez mais
curtos…
Setembrini, maçónico, é o adepto
fiel do progresso, da civilização e do humanismo. É um pacifista mas contra a
Áustria admite todas as guerras… Lentamente, estas ideias vão influenciando o
espírito jovem de Joacquim, o aspirante a militar; pouco lhe interessam as
reflexões e os assuntos da alma.
Hans, por seu turno, vai-se tornando
cada vez mais reflexivo.
Naphta, o jesuíta de família
judaica, é um personagem fortíssimo, que surge a meio do livro. Ele é um nacionalista
que advoga o valor da guerra e anuncia o conflito mundial que se aproximava.
Defende o nacionalismo por oposição a um certo humanismo cosmopolita.
Nafta é um conservador revoltado: a
sua família fora martirizada por serem semitas e o jovem Leo haveria de seguir
o rumo jesuítico mais por revolta do que por convicção, depois de ter lido
Marx. No entanto, foi a doença que o impediu de seguir uma brilhante carreira
eclesiástica. Talvez este espírito revoltado explique o seu radicalismo aliado
a uma inteligência invulgar. E talvez seja por isso que Setembrini o considera
perigoso.
As longas mas profundas discussões
entre Naphta e Setembrini concretizam também a oposição entre o tradicional e o
moderno, o conservador e o progressista. Dá a sensação que a posições se
extremam ao longo da discussão levando mesmo Naphta a defender o primado da fé
sobre a ciência. Só a fé é útil à salvação do homem e por isso a ciência só é
útil se servir a fé.
Note-se que a narrativa se desenrola imediatamente antes do deflagrar da
primeira guerra mundial; neste contexto a obra é também algo premonitória: estes dois personagens, opostos,
inimigos, talvez simbolizem as duas forças opostas que entrarão em conflito e
que depois terão sequência na segunda guerra mundial e em todo o século XX: as
democracias por um lado e os totalitarismos por outro.
Os mais jovens, Joacquim e Hans rejubilam com os argumentos de Setembrini:
democracia, progresso, liberdade; Renascimento, Luzes, Ciência moderna. No
entanto, paira no ar o sinal da razão de Naphta: o absoluto resiste; a ciência
não evita o medo; a lógica do mundo parece não sobreviver sem a autoridade, a
força, a disciplina. Numa palavra, a obediência.
Naphta representa também aqueles que
colocam o espírito à frente do corpo; o espiritual triunfando sobre o carnal.
No entanto, o próprio Naphta foi derrotado pelo corpo: a sua saúde é
terrivelmente precária; sobreviverá o seu espírito? No entanto, para ele a
doença é o estado natural do Homem; é aí que ele assume toda a sua humanidade
porque perante a doença do corpo, impera o espírito.
Defendendo a pena de morte e a
tortura, Naphta afirma o primado do ser universal sobre o ser individual,
acusando Setembrini de defender o individualismo burguês, que ele considera
egocêntrico e fútil.
Este personagem (Naphta) assume um
papel fundamental na obra: o leitor começa por estranhar e mesmo adquirir uma
certa repulsa pelas suas ideias ultra conservadoras mas, mesmo nessas ideias
podemos encontrar poderosos motivos de reflexão. Por exemplo, até que ponto a
defesa da liberdade individual, da tolerância e da democracia não está ligada
ao interesse político da ética capitalista, no culto interesseiro e mesmo
egocêntrico do individualismo burguês?
3- Uma intensa reflexão sobre a vida humana
A vida na planície era vista como
uma prisão, enquanto no sanatório a doença confere liberdade. O próprio líder
do hospital, o Dr. Behrens, é nomeado pelo autor como “Radamanto” que, na
mitologia grega, era um ser de superior inteligência que permaneceu como juiz
do Hades, ou seja, aquele que decide sobre a vida após a morte.
Afirma o Dr. Krokowski: “O que é
orgânico é sempre secundário...” Diz ele que ninguém tem uma saúde perfeita…
esta perspetiva reforça a ideia de liberdade associada à libertação
relativamente ao corpo, ao lado orgânico do ser. Setembrini, crítico e cético
em relação à ciência, à competência dos médicos e até à eficácia do sanatório,
afirma a supremacia da liberdade por oposição aos ditames da ciência (neste
caso, a medicina). No entanto, não há nesta visão nada de conservador,
anti-progresso; antes pelo contrário. A ciência liberta, mas deve ser colocada
ao serviço do “EU”.
No sanatório os doentes leves são
desprestigiados. Os “normais” são os doentes graves e muito graves. Os outros
são, quase, intrusos. Assim sendo, qual
será o motivo que leva os homens a mudar de atitude na montanha? O estar
doente? O estar isolado do mundo? O estar em contato permanente com um grupo? O
estar dependente, ou seja, sem liberdade? São perguntas em aberto que permitem
ao leitor uma intensa reflexão. Este é, a meu ver, o interesse maior da obra.
Seja como for, o hospital é um mundo
fora do mundo. Na época em que Mann escreve (1924), a Europa estava ainda
profundamente marcada pela guerra. E o pós-guerra não oferecia grandes
esperanças.
Por outro lado, vivia-se uma época
de enormes progressos científicos. O jovem Hans é também confrontado com as
mais intrigantes relações entre os mundos psíquico e físico que compõem o ser
humano; estuda até à exaustão procurando esmiuçar todo o conhecimento da alma e
do corpo humano. A montanha e a doença, mais uma vez como fontes de progresso:
a montanha mágica mas, também uma doença mágica.
A própria paixão de Hans por Clávdia
é de uma natureza bem distinta do amor mais comum.
A forma como Thomas Mann vai
descrendo o crescendo da paixão é absolutamente genial. Tal como uma doença, o
amor surge com sinais muito ténues; tal como em relação à doença, a primeira
fase é a da negação. Hans nega estar apaixonado mas os sinais vão-se tornando
evidentes.
Chega a ter um efeito humorístico a
forma como os recém chegados se convencem de forma quase imediata que precisam
de tratamento, mesmo gozando de perfeita saúde, como é o caso do tio de Hans
que subiu à montanha para o visitar e se possível resgatar. Mas não só isso não
se verifica como o próprio James cede à magia da montanha (ou do Dr. Behrens?).
Felizmente, guardou o que lhe sobrava das energias da planície para fugir da
montanha a sete pés. E o leitor fica com a sensação que escapou por muito
pouco. Ao mesmo tempo parece ter-se gorado a última tentativa de resgatar Hans
à planície.
A montanha e toda a envolvência
natural, o frio extremo, o vento, a vegetação, todo esse contexto exprime não
só a beleza natural mas também o medo que inspira no ser humano; uma espécie de
reverência perante a majestade da natureza, assim encarada como uma entidade
superior.
À medida que nos aproximamos do
final vamos sentindo o triunfo da montanha: o regresso de Joachim é descrito
como um “regresso à pátria”; é recebido com uma alegria algo mórbida mas
sentida como o regresso ao estado natural das personagens.
O recém-chegado Peeperkorn, a quem
Clavdia se afeiçoara, entra em cena como o defensor dos prazeres da vida:
comida e mulheres constituem o seu paraíso. Reflexões e ideias são, para ele,
coisas inúteis. Hans Castorp navega agora entre o mundo das ideias e o mundo
dos sentidos.
A parte que precede o final do livro
parece marcar o triunfo do bom humor e a derrota da ciência ou, pelo menos das
preocupações em torno dos chamados “assuntos sérios”. É um final épico:
acabaram as teorias, as reflexões, a melancolia. No sanatório ouve-se música
numa moderna grafonola, fazem-se alegres sessões de espiritismo com defuntos
ressuscitados e até são exaradas em ata bofetadas ilustres em questões de
honra.
Mas, no final, tudo se reduz à
bestialidade; a elevação, a filosofia, a moral e a ciência, tudo será
substituído por um inesperado e bárbaro duelo. Trata-se de uma forte alegoria à
Europa prestes e entrar no período mais negro da sua história…
E,
finalmente, Hans Castorp: após sete anos na montanha mágica, encontrá-lo-emos
enterrado na lama do mundo…
(Também publicado em http://aminhaestante.blogspot.pt/)
3 comentários:
Isto é que é um desafio e pêras :P
Um dia ainda hei-de ler os Miseráveis, Paula :)
Os Miseráveis, estou eu a ler...
Vamos ver...
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