13/09/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
GRAÇA – PARTE XI

(Nota: qualquer semelhança entre o conteúdo deste texto e a realidade é, obviamente, pura coincidência)

Continuando, os sequestradores detiveram-me durante algumas horas. Bem, eram mesmo usurpadores porque se apoderaram de algo que pertence ao povo: eu, uma singela representante de uma nação.
Tentei fazer-lhes ver que o povo se revoltaria pois, no fundo, eles estavam a roubar os cidadãos. Era a ministra quem ali estava, não a Graça. Eles riram com vontade, parecendo terem perdido momentaneamente o medo de serem capturados.
Depois expliquei-lhes que tinha uma família à minha espera, em casa. Eles responderam que o mesmo sucedia com centenas de milhares de desempregados que vagueavam pelas ruas, que, no entanto, tudo o que desejavam era não chegar a casa de mãos a abanar. Prometi, na hora, uma dúzia de postos de trabalho para o departamento de segurança do meu ministério. Voltaram a gargalhar.
Em seguida tentei a estratégia que resultara quando pedia prendas no Natal, quando pedinchei por melhores notas na faculdade ou quando o meu marido me apanhou na cama com dois dos melhores amigos dele, pai e filho: chorei riachos incessantes de lágrimas. Mas esses insensíveis mostraram-se imperturbáveis.
Após o insucesso das minhas tentativas passei ao ataque. Disse-lhes que o governo lançaria uma caça tão feroz aos raptores que nada restaria de cada um deles assim que os cães de raça doberman seguissem o meu rasto e os encontrassem, devorando-os quando ali entrassem. Uma vez mais eles, mostraram-se satisfeitos e um deles disse que era uma boa ideia. Explicou que tinha um pit bull em casa e que iria buscá-lo para que ele me comesse a mim no caso de estarem prestes a serem descobertos. Ainda me passou pela cabeça que se fosse o Pitbull, o cantor, que não seria nada doloroso que ele me comesse, mas logo senti que esse cenário seria pouco provável.
Então iniciei a minha senda de protesto. Manter-me-ia calada até ser salva ou morta. Esse período durou 20 segundos.
Tinha sede e pedi água. Depois fui surpreendida por um ataque de comichão nas pernas - o espaço devia estar empestado de pulgas - e solicitei junto de um dos criminosos que me coçasse vigorosamente as canelas.
Regressei à greve das palavras assim que me senti um pouco mais confortável.
E fui observando.
No início os raptores era quatro: a jornalista, dois técnicos e um miúdo que devia ser estagiário. Mas depois dezenas de pessoas foram-se juntando. Essas não pareciam ser necessariamente jornalistas ou pertencentes aos media. Simplesmente chegavam, espreitavam, riam e partiam. Parecia uma espécie de um jardim zoológico, no qual os visitantes iam lá para me ver e depois iam embora mais satisfeitos do que quando haviam chegado. Até julgo ter visto o primeirinho ministrinho entre os curiosos. Rapidamente as dezenas tornaram-se centenas e, num ápice, milhares.
Todos me viam e ninguém fazia nada.
Até que ele chegou!
De repente, um homem alto e possuindo bíceps invejáveis ergueu-se do meio daquilo a que já se podia chamar multidão. Ele gritou que nem um animal selvagem e, numa questão de segundos, todos fugiram. E só sobrámos nós os dois, eu e ele.
Chamei-o de super-herói. Ele negou. Explicou que já tinha sido isso em part-time, mas que naquele momento era polícia de trânsito. Esclareceu que tencionava rapidamente mudar de secção, que não o achasse incapaz de me salvar. Comentou, de uma forma algo misteriosa até, que era um homem de mil ofícios. Já tinha sido praticamente um pouco de tudo. No entanto, naquele dia, a sua missão era salvar-me.
E assim o fez.
Levou-me ao colo daquele maldito armazém. E caminhou pela rua, não obstante os tomates maduros e os ovos podres que as pessoas que se aglomeraram na rua nos endossavam. Ainda assim, nenhum alimento putrefacto me atingiu, pois ele, segurando-me apenas com um braço, sacou com o outro um guarda-chuva sei lá bem de onde e abriu-o, protegendo-nos. Enquanto me levava, argumentou que já tinha trabalhado numa fábrica de guarda-chuvas antes de ter sido bancário. Fanara-o uns cinco anos antes. Logo me identifiquei com ele e gabei a qualidade do produto por estar impecável ao final de meia década.
Depois levou-me para um sítio seguro.
Nunca mais fui a mesma. Percebi que as pessoas nunca entenderiam a minha dedicação para servi-las. Demiti-me, recolhi as minhas poupanças e um bocadinho das dos outros e fui para o Brasil, apanhar sol e beber caipirinhas. De vez em quando, muito de vez em quando, ainda espreito uma tela suspensa na parede do meu quarto, que havia sido pintada durante um discurso que eu havia feito nos tempos em que era ministra.
Mas sabia que não esqueceria aquele homem que me salvara. Chamava-se Jeremias. Era polícia naquele dia, mas já tivera mil ofícios no passado.




1 comentários:

Norma Gondar disse...

Parabéns Vasco
e ao Rui Ricardo!!

5*****