18/04/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


ROSALINA – PARTE IX


Sonhei durante noites a fio. Nas primeiras vezes não me recordava do conteúdo, apenas acordava transpirada, exausta e com uma respiração ofegante. Depois fui-me lembrando pontualmente, de um cenário escuro aqui, de um homem de rosto tapado ali, uma palmada suave, um gritinho agudo. Então, nas últimas noites tudo se tornou mais claro. Eu vinha sonhando com um homem que me preenchia por completo – bem, preenchia mesmo.
Tinha sido assim desde o último funeral a que assistira.
O homem foi-se tornando cada vez mais nítido e real até que ontem, ou melhor, hoje de manhã, se fez luz. E só há poucas horas soube que tinha de o ter. Ele era o chefe do serviço dos correios - vi a cara dele no sonho, quando nos beijávamos loucamente encostados a uma laranjeira. Pensei no seu nome, mas não descobri qual era. Afinal ele era chefe, logo não usava aquele crachá que mostrava ao mundo que as Marias se chamavam Marias e os Antónios se chamavam Antónios, embora por vezes fossem conhecidos por Tones, Toninhos Toneis ou Tós – como os autocarros. Toy, porém, só conheço um – vocês sabem, aquele que quando era magro tinha um cabelo à camionista, mas que agora que o cortou decentemente engordou dezenas de quilos.
Na verdade não me interessa o nome dele. Prefiro tratá-lo mesmo por 'chefe', 'boss' ou mesmo 'el jefe' – 'el jefe de mi corazon', gosto disto! Podia ter um aspecto mais macho, estilo ibero-latino; se não fosse pálido nem baixote e não tivesse ar de quem pede que lhe enfiem uma trela para mexer o rabo até seria mais fácil tratá-lo dessa forma. Mas, se a montanha não vai a Maomé, Maomé vai à montanha. E eu não sou a montanha. E ele será 'el jefe'.
Portanto, nesta manhã chuvosa e friorenta, vesti uma saia preta e travada, uma blusa branca e uma gabardina bege. Tive azar. Mal saí de casa a saia travou-me em demasia o ritmo da marcha e impediu que me equilibrasse quando escorreguei num par de folhas húmidas que haviam caído das árvores. Voltei a casa e troquei a saia por um par de calças de cabedal castanho – tudo para dizer que continuava boa.
Quando cheguei aos correios tirei duas senhas de cada letra disponível, do A ao E. Enquanto aguardava, retirei uma série de folhas em branco que tinha guardado dentro da mala e enfiei três delas noutros tantos envelopes verdes e brancos expostos nas prateleiras. No remetente, escrevi moradas ao acaso. Depois esperei que a minha vez chegasse. Quer dizer, aguardei por sete ocasiões que a minha vez chegasse. Os funcionários eram quase dez, e 'el jefe' atendia apenas no primeiro balcão.
Assim que a minha sétima vez chegou, endireitei-me e caminhei até ele num ritmo lento, provocando um barulho ensurdecedor a cada passo que dava – culpa dos meus tacões propositadamente sem capas, para chamar a atenção de todos.
E de facto todos olhavam para mim mas os meus olhos só tinham um destino. Ele correspondia. Eu sorri. Ele humedeceu os lábios. Eu dei um jeito no cabelo. Ele coçou o pescoço com a palma da mão. Eu caí outra vez – afinal, os tacões não tinham capas, grande merda! Todos abriram as bocas de espanto e preocupação. Eu praguejei. Um senhor veio em meu auxílio. Eu esbracejei e cravei-lhe uma unha na bochecha. O senhor insultou-me. Eu levantei-me. Ele sorria. Eu exibi os meus dentes brancos salpicados por pingos de sangue que escorreram das gengivas, quando o meu rosto embateu contra o meu punho fechado – não perguntem como raio caí, mas isso aconteceu.
Pousei as cartas no balcão. Ele conferiu. Paguei os envelopes. Ele espreitou o endereço e disse-me que acreditava que dois daqueles códigos postais não existissem – merda! Enchi-me de coragem e respondi que as cartas não interessavam naquele momento, nem as cartas nem o resto.
Ele pareceu meditar por instantes e olhou-me como se eu fosse um frasco de mel. Perguntou-me se tinha o meu número de telefone, para o caso de as cartas serem devolvidas. Eu respondi que, para esse efeito, estava lá escrita a minha morada. 'El jefe' voltou a sorrir e explicou que sabia, mas que me queria ligar primeiro para saber se eu estava em casa de forma a poder entregar-mas pessoalmente.
Eu soltei um guincho quando na verdade desejava apenas mostrar um contentamento relativo.
Dei-lhe o número e dirigi-me à saída abanando as ancas, metro para um lado metro para o outro, e antes de sair lancei-lhe um ar de predadora, como se estivesse a marcá-lo para mim, na certeza que 'el jefe' seria a primeira aventura carnal extra-conjugal.


2 comentários:

andre disse...

Tenho um selo para ti no meu blog
http://saboreiaoslivros.blogspot.pt/2013/04/selo-arco-iris.html
Ass:Pulga electrica

Guiomar Ricardo disse...

kkkkkkk.....!Ri-me imenso com esta cena da RôRô...engatar "el jefe" dos CTT!
Está o máximo!Será k vai chegar a vias de facto?Vai custar a passar esta semana para vermos o desfecho do romance ou não...
Bora lá,Sra.Dra.Rosalina,vai-te a ele!