CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
CARDOSO
– PARTE X
Quando cheguei ao meu lar, após
a visita dos polícias, dei uma vista de olhos pela televisão. E,
por milagre de Deus, estava a dar uma série que era mesmo aquilo que
eu precisava de ver.
Era sobre um padre assassino!
Vejam só! Um padre assassino! O padre era protagonizado por um gajo
louro e de bom aspecto. Possuía um nome esquisito mas já tinha sido
o Jack Bauer, logo tinha de ser duro.
E em que consistia essa série? O
padre queria matar um gajo que se tinha confessado, e que por acaso
tinha uma ligação com ele, tendo conduzido o padre ao infortúnio.
Enquanto o pobre coitado se confessava, esperando pelo perdão, o
padre saca de uma arma e diz “sabes quem sou?” E PUM PUM PUM.
Mata o gajo! Quer dizer, não foi assim tão sórdido e repentino,
mas contado desta forma tem mais emoção. E na verdade o assassino é
que matava o padre, mas cada um vê as coisas à sua maneira, certo?
Que mensagem de Deus era esta?
Bem, eu tinha de me redimir antes de ser preso.
Nem dormi nessa noite. A manhã
veio e cancelei a missa das 11H00. Coloquei um cartaz onde se podia
ler: “Hoje só aceito confissões.”
E aguardei no confessionário - o
da igreja, não o da TVI.
O primeiro paroquiano entrou.
“Como te chamas?”
“Jaime.”
“Jaime, meu filho, que merda
fizeste tu para estares aqui a lamentares-te?”
“Tentei matar o meu melhor
amigo.”
“Foda-se que és rijo.”
“Vim da Biquinha.”
“Ok. Estás absolvido. Põe-te
a andar que está alguém à espera.”
“Xau aí, padreco.”
“Espera. Antes de saíres deixa
aí a tua morada.”
“Para quê?”
“Vou vender umas rifas e o
prémio sairá a uma das pessoas que se confessar hoje.”
“Fixe, mete aí a morada da
minha sogra também, assim tenho mais hipóteses de ganhar.”
Ele saiu, outra se sentou. Soube
que era uma mulher pelo barulho dos sapatos de salto alto.
“Como te chamas, minha filha?”
“Rosalina.”
“Rosalina... Conhecia uma
Rosalina da net, era bem boa, tinha uma anca de fazer ganir.
Fantasiei com ela durante meses.”
“Ó senhor padre, se quiser
faço-lhe uma lap dance só para si, ali no altar.”
“Você é essa Rosalina?”
“Nem mais e esse é o meu
pecado. Quero mudar de vida, mas antes, se quiser, faço um show
só para si.”
“Agora não dá que tenho gente
à minha espera. Estás absolvida, sua tola. Tenho pena que deixes
essa vida. Deixa aí a tua morada num papel para que Deus te possa
visitar.”
“Obrigada, senhor padre.”
Ela saiu e outro entrou.
“Como te chamas, meu filho?”
“Moustafa. E também Maria e
Bruno.”
“Que puto de nome é esse? És
iraniano? Tens armas químicas no bolso, seu adorador do Sadam?”
“Sou português, mudei de
nome.”
“Então és burro que nem um
cepo. E porque não vens sozinho?”
“A Maria e o Bruno estão
sempre comigo.”
“Quais são os teus pecados,
Abdul?”
“Moustafa.”
“Isso.”
“Todo eu sou um pecado. A Maria
e o Bruno não têm pecados.”
“Então eles que continuem a
levar contigo porque a vida é equilíbrio mesmo.”
“Estou perdoado?”
“Desde que não me estejas a
enganar e não idolatres o Alá. É que ele e Deus não se curtem
muito.”
“Juro que só tenho olhos para
Deus.”
“Então põe-te a andar e deixa
a morada, Ahmed.”
“Moustafa.”
“Isso.”
“A minha, a da Maria ou a do
Bruno?”
“A tua, parvalhão. Eles não
pecaram.”
“Posso perguntar para quê?”
“Queres que te pergunte por
todos os teus pecados?”
“Não.”
“Então escreve a morada e
deixa à porta do confessionário.”
Moustafa saiu e novos tacões se
fizeram escutar.
“Quem és tu?”
“Oi, eu sou a Graça, cara.
Tudo jóia?”
“Foda-se, és brasileira? Isto
aqui não é o reino de Deus. Põe-te a andar.”
“Ah, sou portuguesa. Vê o meu
sotaque, agora? Estava a disfarçar. É a força do hábito, andavam
à minha procura no Brasil, para além disso quando converso com
sotaque brasileiro os gajos olham para mim de uma forma mais
intensa.”
“Quero lá saber da puta da tua
vida! Não te calas?”
“Fui política, é a força do
hábito.”
“Política? Podes ir, já
percebi quais os teus pecados. E deixa aí uns euritos pelo dinheiro
que me roubaste através dos impostos.”
“Obrigado, senhor padre.”
“E escreve a morada numa das
notas.”
“Para quê?”
“Ouvi dizer que o presidente da
câmara vai ser preso. Alguém tem de substitui-lo.”
“Ah, ok.”
“Adeusinho.”
Ela saiu e outro sentou-se no
lugar.
“Bom dia, padre.”
“Jeremias?”
“Ó padre Cardoso! Há quanto
tempo?”
“Porque estás aqui, seu
caralho?”
“Para me confessar. E ali
atrás, na fila, está também a Carolina, aquela gaja boazuda com
que me fizeste perder a virgindade.”
“Bons velhos tempos. Que pena
não poder experimentá-los de novo. Agora vão fazer-me a cama...”
“Vão? Porquê?”
“Esquece. Quais os teus
pecados, Jeremias?”
“Quais não são os meus
pecados?”
“Tens razão. Estás perdoado.
Voltaste à casa que herdaste da tua mãezinha?”
“Sim. Ficarei por cá durante
uns dias.”
“Ok. Baza.”
“Xau aí, Cardoso Tenebroso.”
“Até à vista, Jeremias
Enguias.”
“Não curto essas bocas.”
“Deus não gozará contigo.
Faz-te à vida para que eu possa receber o próximo pecador.”
O Jeremias saiu e ouvi a porta
bater, embora não me tivesse apercebido de qualquer sombra.
“Quem está aí?”
“A Madalena.”
“A arrependida?”
“Não, essa já morreu há que
séculos, senhor padre.”
“A julgar pela tua voz, pareces
novinha.”
“Tenho dez anos.”
“E já tens pecados?”
Preparei-me para escutar a sua
voz, mas senti uma dor aguda no peito. Era muito forte e paralisou-me
por completo. Ainda assim, levei a mão àquela zona e só quando
escorregava do banco percebi que estava a ter um ataque cardíaco.
Senti que perdia a consciência. No entanto, era capaz de ouvir
risadinhas infantis do lado de lá do confessionário. Sabia que
tinha poucos minutos de vida, por isso decidi agir.
“Madalena?”
“Sim?”
“Tenho uma missão para ti.”
“Não posso, tenho escola.”
“Devem estar aí uns papéis
com umas moradas.”
“Já disse que tenho escola.”
“Suplico-te. Consegues ver?”
“Sim.”
“Tens de matar as pessoas que
moram nesses locais. Jaime, Rosalina, Moustafa, Graça e Jeremias.”
“Matar?”
“Sim, tens de terminar a minha
obra. Agora que vou morrer não conseguirei levar a minha tarefa
avante.”
“Matar como no Emily Grace?”
“No quem?”
“Aquele jogo de computador no
qual enfiamos balázios na malta.”
“Suponho que sim.”
“Altamente! Conte comigo,
senhor padre.”
Nessa altura senti frio e a visão
turva. Deixei de escutar e de sentir o chão que me sustinha. Ainda
assim, mesmo antes de morrer, percebi que a Madalena me tentava furar
os olhos com uma escovinha destinada a limpar a sujidade entre as
gengivas, os dentes e o aparelho dos dentes.
E sucumbi de vez, felizmente sem
ter sentido a escova a perfurar-me.
2 comentários:
Palavras para quê?!
Este último episódio supera todas as expectativas.
Parabéns,Vasco!
Bons diálogos :)
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