Estou com uma crise de rinite alérgica mais deprimente do que o plano anti-crise do governo. Sob o efeito de antibióticos, anti-inflamatórios, anti-histamínicos e outras drogas que tais, dei comigo a olhar para as estantes, à procura do livro que definisse este estado de quem tem duas malaguetas metidas nas narinas e a cabeça coroada com pregos maiores do que os do próprio Cristo. E achei. O livro é Outono em Pequim, de Boris Vian.
Acho que ainda as galinhas tinham dentes quando li este livro pela primeira vez. Se bem me lembro, era uma edição antiquíssima, daquelas que traziam as folhas unidas e que tinham de se abrir à facada. (Coisa horrível, aquilo: a gente comprava um livro e a primeira coisa que tinha de fazer era espetar-lhe uma faca no ventre). Devia ter os meus 18 anos, mais coisa menos coisa. Lembro-me que achei aquilo estranhíssimo mas fiquei bem impressionado. Não sei se me entendem; era uma daquelas leituras sobre as quais a gente diz: não percebi nada mas é lindo! Que bem escreve o senhor!
Agora reparei que tinha em casa esta edição da saudosa colecção do Público e resolvi reler. Em boa hora o fiz. Além de descobrir a maravilha que ali estava foi um exercício pessoal de regresso ao passado. Vi claramente visto, como dizia o Poeta, como aos 18 anos somos ingénuos. O mundo que estava naquele livro, para mim não passava de uma fantasia agradável, quando no fundo a fantasia era apenas o embrulho em que Boris Vian escondeu verdades profundas.
Vian, falecido em 1959 foi músico, engenheiro, escritor e cantor. Nesta obra estão bem expressas as suas tendências estéticas e políticas: uma visão surrealista do mundo (onde o sonho e o ilógico são meros retratos da realidade) e uma concepção algo anarquista do poder. O poder é, neste livro, um exercício de autoridade fútil e absolutamente inútil.
O Outono em Pequim é uma obra magnífica. Fica assim como que a meio caminho entre o non-sense dos Monty Python e o “absurdo real” de Kafka. Personagens absurdos, com comportamentos absurdos, num mundo absurdo.
E tudo tão real!
Médicos que matam porque não é normal que todos vivam. Caminhos de Ferro no deserto porque as obras são inexoráveis.
Escavações arqueológicas para fazer buracos onde os homens se perdem, porque o passado tudo devora.
Vidas que se perdem quando se apanha o autocarro errado. Um ditador que o é porque apanhou o autocarro certo.
Um Conselho de Administração que distribui entre si cartões eróticos naquela que é a sua mais nobre função.
Um padre que sonha com belos seios femininos e que é o anjo da guarda dos criminosos.
Um livro magnífico, profundamente irónico, descaradamente real. Um livro sobre a vida.
Um clássico imperdível.
- Assim seja!
2 comentários:
Olá Manuel
Da próxima vez que for à livraria este livrinho não me escapa.
Parece interessante, e achei interessante também as tuas duas análises, realmente quando lemos algo uns aninhos depois a nossa interpretação é diferente, sem dúvida que sim.
Um abraço
É verdade, melhoras :D
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