15/02/2011

Trópico de Câncer - Henry Miller

Eis um livro que é vítima do preconceito e de uma certa ignorância medieval. É verdade que usa uma linguagem que, na vida comum, podemos adjectivar de obscena. É verdade também que não é um romance com uma linha de rumo definida, o que torna a leitura, por vezes, algo complicada. Não é, portanto, um livro fácil nem de perto nem de longe um livro erótico. A sua natureza auto biográfica e a profundidade filosófica do enredo aproxima-o mais do existencialismo de Camus do que da literatura erótica com que tantas vezes foi conotado.
Miller escreve como pensa e como sente. Daí que a sua linguagem seja absolutamente livre. Livre como o pensamento e os instintos humanos que o comandam.
Não é também um livro divertido. Longe disso. Porque a vida de Miller (e de Joe, o alter-ego do autor, personagem principal desta obra) nunca foi fácil nem divertida. Vagabundo em Paris, com empregos precários ou mesmo sem emprego, Joe vagueava pela vida à procura de um sentido para uma existência irremediavelmente perdida nas ruas e vielas do sofrimento.
Quase todo o enredo se desenrola em Paris (exceptua-se uma passagem por Dijon, onde Joe foi um inenarrável professor de inglês). O encanto, o mistério e a sedução de Paris estão por todo o lado, mesmo no meio da miséria. Paris exerce uma atracção fatal sobre Joe que, no entanto, vê nos parisienses os maiores obstáculos. Os outros são sempre o inferno, como afirmou Sartre.
Mau grado estes aspectos muito ligados ao existencialismo, Miller é profundamente influenciado por Dostoievski, que cita várias vezes. A vida de Joe faz lembrar, por diversas vezes personagens do mestre russo, como Trofímovitch de Os Possessos ou Michkin de O Idiota. Joe, como Miller, é um pessimista. O tom melancólico da obra resulta da monotonia de uma vida em que o sexo, a comida e a bebida são os refúgios únicos do inferno mundano, como se fossem necessidades básicas, as únicas que poderiam tornar a vida simplesmente suportável.
Outro aspecto notável é a forma como Miller consegue exprimir os seus sentimentos e percepções de uma forma por vezes marcadamente surrealista: as reflexões de Joe confundem-se com os seus sonhos e pesadelos como na pintura de Dali ou na obra-prima de Boris Vian, Outono em Pequim.
Em suma, podemos dizer que se trata de uma obra que exige reflexão e uma leitura muito atenta. Em grande parte é uma imensa reflexão sobre a vida, o espelho de uma existência sofrida.
Não posso, no entanto, considerar este livro uma obra-prima. Falta-lhe a dimensão lúdica. Faltam-lhe os motivos de interesse que um grande romance tem de envolver. Obviamente, essa nunca foi a preocupação maior de Miller. Trata-se de uma obra marcadamente introspectiva, pelo que o prazer de ler nem sempre triunfa.
Também pubilcado em http://aminhaestante.blogspot.com/

1 comentários:

Carla disse...

Devo admitir que faço parte desse grupo de pessoas de olha para este escritor de lado mas isto tem um motivo, tudo o que ouvi sempre cá por casa sobre este escritor me leva a crer que não valeria apena pegar nele.
Mas depois de ler o teu post vou certamente pegar nele, tenho que ver onde para na estante...
Boas leituras;)