Pi é um personagem fascinante, daqueles que qualquer leitor gravará na memória; e A Vida de Pi é um livro único. Belo, fantástico, soberbo.
Pi teve uma infância extraordinária: um professor comunista, um pai apaixonado por animais e três religiões que mostravam a Pi todo o encanto que pode haver na religião: mundos de paz, de bondade e de comunhão com a natureza. As religiões não têm de ser o meio fértil dos ódios, guerras e fanatismos. Talvez só os indianos percebam esta beleza. Até neste aspecto este é um livro único: bem diferente daquelas visões tenebrosas da Índia que a literatura nos tem oferecido. Não se trata aqui da Índia corrupta e miserável, mas da Índia mística e profunda, bela e guardiã dessa paz interior a que chamam misticismo.
Mesmo tratando-se de uma história bastante dramática, Martel não prescinde de um sentido de humor fino e discreto numa escrita sentida, simples e profunda, com um envolvimento filosófico que dá à obra uma grande riqueza de conteúdo.
As magníficas descrições da vida animal não se restringem a uma abordagem romântica e bucólica: a luta pela sobrevivência no barco naufragado assume contornos de extremo dramatismo; a luta pela vida e a impiedosa ausência de sentimentos exigem que a sobrevivência apele ao egoísmo. A crueldade é levada ao extremo. No entanto, quando Pi se encontra no alto mar, meses a fio, junto de uma fera de dois metros de envergadura, a esperança nunca vacila. A vida vai perdendo sentido, a espera corrói a esperança mas nunca a destrói. O medo que lhe desgasta a alma é o mesmo medo que lhe serve de defesa.
Na sinopse deste livro fala-se de uma mistura entre o real e o absurdo. Mas trata-se, por assim dizer, de um absurdo real, um absurdo que se cristaliza em situações reais e objectivas: o rapaz e a fera frente a frente, rivais e aliados, o instinto e a razão, ambos presas e predadores. Entre Pi e o tigre não há uma relação de aliança; não há romantismo nesta história; há o matar e o morrer, a morte e a sobrevivência.
Um rapaz e um tigre, sozinhos num barco salva-vidas, em pleno Oceano Pacífico, durante sete meses. Não se trata de um tema particularmente propiciador de um enredo interessante. No entanto, Martel consegue-o com mestria, transformando um quotidiano monótono num drama permanente, numa narrativa sempre emocionante. Em algumas passagens, este livro assemelha-se ao mais assombroso documentário do Nathional Geographic. Aliando uma fértil imaginação a um conhecimento profundo do mundo animal, o autor cria situações magníficas como um impensável combate entre um tigre e um tubarão, numa luta que deixa o leitor aterrado e ao mesmo tempo maravilhado.
Na luta permanente entre o homem e o animal não é a inteligência daquele nem a força deste que triunfa; é a força mental. O querer. A vontade. É na vontade que reside todo o heroísmo e o maior herói é aquele que consegue desafiar os limites da resistência. Esse heroísmo é servido, no entanto, por uma arma poderoso – a esperança. É a capacidade de sonhar que salvará Pi. É o sonho que nos comanda a vida, afinal.
Num dos episódios mais belos deste livro, Pi vai parar a uma ilha fantástica, onde depara com algas carnívoras e lagos que transformam a água do mar em água doce. Esse episódio ilustra com mestria a linha ténue que separa a realidade da fantasia; ou melhor, que ilustra na perfeição a beleza real que há na fantasia.
O final do livro é belíssimo por envolver uma mensagem extraordinária: por vezes a realidade é muito mais bela que a fantasia.
2 comentários:
Se vejo mais um comentário como este ou como o da Paula vou ter de ler o "raio" do livro.
Abraços
Meu caro ângelo, em vez de ficares aí à espera de mais um comentário favorável, faz favor de "dar corda às sapatilhas" e ir À fnac comprar o livrinho :)
Ou, se quiseres, empresto-te o meu :)
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