Opinião:
O grande mestre do surrealismo na pintura, Salvador Dali, afirmou uma vez algo como isto (cito de memória): a cultura do espírito deriva do desejo. Ou seja: muito do que criamos, muitas das construções mentais que efetuamos advêm do lado emocional do nosso ser e, portanto, são alheias à razão. É por concordar com este pressuposto que tenho um certo fascínio pelos artistas e pensadores surrealistas: nós não somos só inteligência.
O grande mestre do surrealismo na pintura, Salvador Dali, afirmou uma vez algo como isto (cito de memória): a cultura do espírito deriva do desejo. Ou seja: muito do que criamos, muitas das construções mentais que efetuamos advêm do lado emocional do nosso ser e, portanto, são alheias à razão. É por concordar com este pressuposto que tenho um certo fascínio pelos artistas e pensadores surrealistas: nós não somos só inteligência.
Mas o surrealismo literário é talvez o mais difícil dos estilos. Escrever sem um rumo definido pela racionalidade e seguir um percurso ditado por impulsos estéticos mais do que pelas coordenadas da razão é um desafio perigoso. Também neste livro não há uma linha de rumo definida; há cerca de uma centena de curtas narrativas (a maioria delas podendo ser apelidadas de micronarrativas) sem um fio condutor entre elas a não ser a referência constante ao whisky duplo, fornecendo uma pequena dose de racionalidade (pouco consentânea com o tom geral da obra) ao subtítulo do livro: “devaneios do whisky duplo”.
Mas há, bem vistas as coisas, algo mais a unir estas pequenas narrativas: um tom marcadamente sombrio: amores infelizes, viagens goradas, sonhos diluídos e percursos interrompidos. Ao longo das estórias, o leitor vai-se apercebendo que a ausência de lógica acompanha uma confissão do autor: a também ausência de redenção no caminho desastroso do ser humano em busca desse lugar comum que é a felicidade.
A ausência de lógica, ou este primado da emoção destempera a vida. Desfaz o nó górdio do destino: não há redenção; há fogachos, esparsos, como os devaneios nascidos da ilusão do whisky duplo.
Chegado ao final, o leitor pede mais. Rui Mateus será capaz, certamente, de construir uma narrativa de maior folego onde este primado das emoções possa ser plasmado em vida corrida, não em vidas interrompidas, como acontece neste livro. Seja como for, fica o enorme mérito de mostrar que a vida nem sempre é razão nem é a inteligência que pode levar o ser humano ao caminho da felicidade, seja lá o que isso for. No entanto, talvez a vida seja mesmo assim: feita de estórias pequenas, de coisas que terminam mal começam, de cenas de múltiplas peças de teatro, misturadas sem um enredo, entrelaçadas sem que o ator principal possa sequer uni-las com o fio da razão ou mesmo dessa coisa banal e corrediça a que chamamos lógica.
Também publicado em http://aminhaestante.blogspot.pt/
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