03/04/2012

Crónica d'Orelhudos - Luís Novais (II)

Crónica de Orelhudos
de Luís Novais
Edição/reimpressão: 2012
Páginas: 234
Editor: NA
ISBN:NA





"Nestas serras e planícies que o tempo tornou distantes, existiram uma, duas, três e até mais aldeias. Algumas eram maiores do que outras, mas nenhuma tão grande que aldeia não fosse. Aí viviam agricultores e pastores e artesãos e até alguns curadores que este era o nome que então se dava àqueles que tratavam do corpo e da alma.
O que não existia nestas aldeias era aquele grupo a que hoje chamamos de governantes e que, é sabido, tanto se podem inserir na classe dos políticos, como na que se diz ser a dos estadistas, ainda que estes pareçam ser em número cada vez mais minguado, havendo mesmo quem diga que se extinguiram, ou, até, que nunca chegaram a existir e que mais não são do que heróis de mito, ombreando com os Ulisses e os Aquiles, os Prómeteus e os Ícaros."


Assim se inicia uma fantástica jornada comandada pelo não menos irrepreensível Fernão Vasques Colarinhos, um orelhudo levado a cair no sistema das mulas e andando de burocracia em burocracia até à mentira viu-se "obrigado" a liderar uma revoltar, encetando uma luta contra o sistema, sistema criado pelas mulas.
Luís Novais parte do básico do nosso sistema comunitário e cria, e como cria este senhor, de forma sublime e directa a nossa "nova" organização social, de como passamos de trocas directas para a troca através do contado (dinheiro), das decisões comunitárias paras as decisões judiciais, enfim tudo que possam imaginar da complexidade da nossa "nova" sociedade. 
Fernão Vasques Colarinhos um orelhudo (como orelhudos subentendemos o povo) "orientado" por uma mula (mulas serão os governantes) e levado pelo sonho dá um passo de gigante supostamente suportado pelas mulas, que mais não querem aquilo que os nossos governantes querem... e isso é: ninguém o sabe, nem os próprios. Nessa "viagem" sem destino Fernão Vasques irá deparar-se com inúmeros obstáculos criados pelas mulas para que ele não atinja os meios que as próprias supostamente lhe iriam oferecer, obedecerá as suas ordens cegamente e tudo perderá. Renascerá.
O nosso léxico sobre mulas fica garantido pois elas parecem tortulhos a brotar da terra, ele existe a mula dos relatórios, a prestamista, a sonhadora, a conselheira, a dos fundos, etc...  

Luís Novais suporta-se em personalidades como Fernão Vasques, Maria da Fonte ou a padeira Brites de Almeida com maior ou menor intensidade para ajustar as suas personagens dando-lhes ainda mais interesse e vivacidade.
O sentido irónico, mordaz e até perigoso com que Luís Novais escreve é delicioso e digo perigoso pois se algumas ideias expressas no livro caiem em mãos erradas quem sofre são os orelhudos e a bom sofrer. Como homem do Minho, Luís Novais, estão bem presentes referências a esta região tão Portuguesa sempre com universalidade como suporte essencial, um grande obrigado por dar a conhecer a nossa região de uma forma tão divertida e original, sente-se nos textos do autor como sendo um homem do mundo.
A escrita de Luís Novais, para quem não conhece mas devia pois está a perder uma escrita fantástica, é deliciosa, este senhor escreve muito bem com pormenores deliciosos, diria mesmo subliminares, pode-se não gostar do tema, mas não existe subjectividade em relação à sua escrita... é bom de escrita/sintaxe e ponto final.

Excertos do livro:
"Com estas trocas, cada um fazia o seu ter a partir do seu ser e não o seu ser a partir de seu ter, como viria a acontecer em tempos postumeiros, segundo o que vos contaremos adiante."

"Porém, um dia aconteceu aquilo que acontecer teria, que sempre que muito pensamos em algo, acaba esse algo por acontecer, seja tarde ou cedo. Será por isso que, ainda que tentemos em a morte não pensar, sempre ela surge em nossos pensamentos porque ela é inevitável e é inevitável que o inevitável nos surja em ideia para que em matéria de facto possa ser consubstanciado, ainda que não deveis supor que estejamos a desmentir que a ordem possa ser a inversa."

"Riram-se e dali se foram à casa da Sonhadora, a provar de saborosas viandas e a abrir uma garrafa de Porto que era para um homem nunca mais se esquecer."


Um livro muito bom, e grátis, sim é grátis sem necessidade de fornecer contado ao autor/editor/expedidor/etc..., claro que se o desejarem o podem, e devem, fazer através do site do autor.

Para completar um obrigado ao Manuel Cardoso por me ter dado este enorme prazer.




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