CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JAIME
– PARTE I
O
meu nome é Jaime. Tenho quarenta e três anos, uma mulher
desmazelada e desdentada – na verdade, a minha boca não está
muito melhor – e quatros filhos que foram nascendo nos primeiros
anos de matrimónio. O que vale é que lhe tiraram, à minha mulher,
uma coisa qualquer – o útero, mas convém-me não saber o nome, é
um hábito que venho adquirindo –, senão teria uma catrefada de
ranhosos a vaguear pela casa. A bem-dizer, quatro não são assim
tantos. Até são úteis, os garotos, para fazer recados e dar-me
algumas regalias, mas isso é outra conversa.
Fora
a mulher, os filhos e algumas coisas que tenho dentro de casa que
caberiam dentro de três sacos pretos do lixo, com capacidade para
mais de cem litros, iguais aos do café do Manel, nada mais possuo.
Deduzo
que nunca tenham ouvido falar de mim. No entanto eu estou em todo o
lado e sob diversas formas. Não, não sou Deus, mas quase acabo por
ser tão omnipresente quanto ele. E sim, falo caro para o meu
estatuto social; não sendo um doutor, leio diariamente o JN, o
Público, A Bola e O Jogo. Na realidade, não sou assim tão burro.
Mas, neste país, interessa-me sê-lo, pois afinal os burros passam a
ser eles, vós, os outros: aqueles que me sustentam.
Todavia,
se me quiserem encontrar fiquem sabendo que moro no bairro da
Biquinha, em Matosinhos. Não sei se conhecem. Fica junto à
circunvalação, a mesma que vai dar à praia e àquele monumento
dedicado aos pescadores que, consta-se, custou uma pipa de massa.
O
bairro... Vivo lá desde a minha adolescência. Se entrassem na
Biquinha há vinte ou quinze anos certamente sairiam mais pobres do
que quando haviam entrado. Mas, provavelmente, não se atreveriam a
passar a fronteira da cidade. Nesse tempo havia buracos nos passeios
e nas estradas, lixo amontoado nas ruas, carros amolgados à frente
das casas degradadas, olhares agressivos, gritos a disputar um resto
de refrigerante, risos sádicos a torturar animais indefesos.
Nesses
tempos, nós, os moradores, parecíamos miseráveis. Andávamos
esfarrapados e sujos. Queixava-mo-nos nos cafés por entre cigarros
fumados até ao filtro e garrafas de cerveja bebidas, as quais
guardávamos para descontar ao final do mês no Continente – o
vasilhame sempre dava para garantir mais uns dois ou três litros de
borla –.
Hoje,
não. Somos pobres chiques. As ruas foram alcatroadas e as linhas de
trânsito pintadas com um branco tão puro que até ofusca os olhos.
Se não fosse a mesma roupa gasta e remendada pendurada nas janelas,
os prédios e as casas pareceriam novos, ou quase. Os caixotes e
contentores do lixo são agora iguais aos que estão instalados nos
locais onde moram os ricos. Tudo parece novo na Biquinha, até o ar
se tornou mais respirável. Tudo menos o interior das casas. Os
berros persistem, assim como a violência. As discussões, os
impropérios, o ódio, a indiferença, o vício continuam escondidos
no seio das nossas habitações.
É
o que eu digo. Somos pobres camuflados. Pobres de posses mas também
de espírito. Mas ao menos parecemos menos pobres do que aquilo que
realmente somos.
E
este é o início da minha história...
5 comentários:
Muito bom!
Aguardamos o episódio k se segue...
Concordo com o Guiomar Ricardo, agora só resta esperar pela continuação da história de Jaime na sua Biquinha.
Continua Vasco ;)
Muito bom Vasco, curiosa com a continuação... :)))
Muito bom!
Excelente, como era de esperar;)
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