23/01/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JAIME – PARTE V

O tempo estava mau como o caraças. Chuva, vento, frio, um ou outro trovão. Nas notícias diziam que as ondas chegariam a não-sei-quantos metros de altura. Nem saí de casa depois do almoço. Na realidade foi a primeira vez que tal aconteceu desde que tenho memória. Lençóis, sacos do lixo, toldos, cadeiras plásticas e outras coisas voavam. Quando não dava nada de jeito na televisão (os gajos da transmissão por cabo tinham cortado o sinal ao pessoal que se aproveitava do único vizinho assinante... ladrões...) eu divertia-me mirando através da janela, rindo dos tolinhos que achavam que um guarda-chuva resistiria à intempérie ou daqueles pais e avós que traziam um rebanho de putos debaixo das asas e dos casacos, como se a ventosidade pudesse levantá-los do chão e levá-los por aí. Parvos. Podiam relaxar, o máximo que podia acontecer era tropeçarem e caírem numa poça de água. Mas e daí? Já estavam todos encharcados.
Eu ia e vinha, ora sofá ora janela, sempre que davam reclames que eu já tinha visto. Até que o meu mundo se desmoronou. Um segundo antes de escutar um relâmpago, pimba: a luz foi abaixo. Fiquei chateado. Desde que haviam remodelado o bairro que tal não sucedia. Lembrei-me que tinha de ir fazer barulho à Câmara Municipal, não se tratam assim as pessoas! Depois não querem que um gajo passe os dias nos cafés a jogar matrecos e a falar da bola.
Assim, enfiei-me definitivamente na janela. Um cão molhado a correr... Um carro a passar e a molhar o Tone da Maria no passeio, grande aselha, é bem feito, deve-me cinco euros da lerpa há três meses... Uma velha que não conheço a correr com dois sacos numa mão e o peito no outro braço... Uma bola a rolar perdida, algum ficou sem entretenimento... Uma mulher a correr com os putos atrás. Caiu! Que riso! Ainda por cima, os miúdos saltaram por cima dela e teve de se levantar sozinha. Os catraios abrigaram-se no meu prédio e a mulher demorou mais um minuto a lá chegar. Fiquei a pensar porque reconheci um casaco vermelho no meio daquela embrulhada toda.
Passou outro minuto e a porta de casa abriu-se. Os meus putos entraram a correr divertidos e a seguir a mulher a chorar. Perguntei-lhe o que se tinha passado, mas ela apenas se lamentou. Afinal tinha caído e ninguém a tinha ajudado. Questionou-me por que não tinha ido buscá-los com o carro. Parva, está farta de saber que o FIAT só pega metade das vezes em dias de chuva. Antes cinco molhados do que seis, não?
Terminado o choro, veio outra vez fazer queixinhas. Disse-me que um dos miúdos tinha trazido um recado do professor. Não liguei, mas ela enfiou a caderneta, ou lá como se chama, em frente dos meus olhos e eu acabei por ceder, afinal a luz ainda não tinha regressado. Dei uma espreitadela e detectei que os recados duravam há uns tempos, dois meses para ser mais preciso. Mau comportamento, desatenção, ausência dos trabalhos de casa efectuados, má influência sobre os colegas... essas tretas que os psicólogos inventaram para salvar a pele dos incompetentes.
Fui ao quarto e a mulher estava a ralhar com o chavalo. Berrei ainda mais alto. Parou logo com aquela treta e ficou a olhar para mim como se eu fosse filho do diabo. Disse-lhe logo que o puto não tinha culpa que a professora, ou o professor, não conhecia nem me dei ao trabalho de ver a assinatura, não tivesse mão neles. Não gostei. De caminho a culpa era minha, não? Os putos vão para a escola para aprender.
Nem dormi nessa noite.
No dia seguinte fui lá tirar satisfações, afinal era uma professora, e por pouco não lhe enfiei dois socos. Ainda arrebitou cabelo! Mais tarde soube que não teve tanta sorte com os pais da Quininha, também aqui da Biquinha. Levou com uma cadeira nas costas e meteu baixa.
Mas ficou tudo bem porque o professor substituto era um gajo porreiro. Não chateava nem nada, nem trabalhos de casa mandava. E assim é que é! Conseguia coordenar o seu tempo de forma a dar a matéria toda quando devia. A ver se lhe ofereço uma mini no Natal.


4 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

E a saga continua...Jaime consegue fazer-me rir mesmo sem eu querer.É que é assim mesmo.Quem os conhece como eu...
Vasco mais uma vez :fantástico!

Ângelo Marques disse...

um dia ainda ofereço uma mini ao Jaime...

Odete Ferreira disse...

Tenho seguido e tenho-me divertido, mas também apreciado a particularidade da escrita...

Um Jaime retratado como se fora um "tipo social", género Gil Vicente, devidamente enquadrado no tempo de hoje e numa realidade que grassa por aí...

:)

Vasco disse...

Obrigado.

Ângelo, acho que a Odete também quer oferecer uns tremoços ao Jaime... e duvido que ele se fique por uma mini apenas...