CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JAIME
– PARTE V
O
tempo estava mau como o caraças. Chuva, vento, frio, um ou outro
trovão. Nas notícias diziam que as ondas chegariam a
não-sei-quantos metros de altura. Nem saí de casa depois do almoço.
Na realidade foi a primeira vez que tal aconteceu desde que tenho
memória. Lençóis, sacos do lixo, toldos, cadeiras plásticas e
outras coisas voavam. Quando não dava nada de jeito na televisão
(os gajos da transmissão por cabo tinham cortado o sinal ao pessoal
que se aproveitava do único vizinho assinante... ladrões...) eu
divertia-me mirando através da janela, rindo dos tolinhos que
achavam que um guarda-chuva resistiria à intempérie ou daqueles
pais e avós que traziam um rebanho de putos debaixo das asas e dos
casacos, como se a ventosidade pudesse levantá-los do chão e
levá-los por aí. Parvos. Podiam relaxar, o máximo que podia
acontecer era tropeçarem e caírem numa poça de água. Mas e daí?
Já estavam todos encharcados.
Eu
ia e vinha, ora sofá ora janela, sempre que davam reclames que eu já
tinha visto. Até que o meu mundo se desmoronou. Um segundo antes de
escutar um relâmpago, pimba: a luz foi abaixo. Fiquei chateado.
Desde que haviam remodelado o bairro que tal não sucedia. Lembrei-me
que tinha de ir fazer barulho à Câmara Municipal, não se tratam
assim as pessoas! Depois não querem que um gajo passe os dias nos
cafés a jogar matrecos e a falar da bola.
Assim,
enfiei-me definitivamente na janela. Um cão molhado a correr... Um
carro a passar e a molhar o Tone da Maria no passeio, grande aselha,
é bem feito, deve-me cinco euros da lerpa há três meses... Uma
velha que não conheço a correr com dois sacos numa mão e o peito
no outro braço... Uma bola a rolar perdida, algum ficou sem
entretenimento... Uma mulher a correr com os putos atrás. Caiu! Que
riso! Ainda por cima, os miúdos saltaram por cima dela e teve de se
levantar sozinha. Os catraios abrigaram-se no meu prédio e a mulher
demorou mais um minuto a lá chegar. Fiquei a pensar porque reconheci
um casaco vermelho no meio daquela embrulhada toda.
Passou
outro minuto e a porta de casa abriu-se. Os meus putos entraram a
correr divertidos e a seguir a mulher a chorar. Perguntei-lhe o que
se tinha passado, mas ela apenas se lamentou. Afinal tinha caído e
ninguém a tinha ajudado. Questionou-me por que não tinha ido
buscá-los com o carro. Parva, está farta de saber que o FIAT só
pega metade das vezes em dias de chuva. Antes cinco molhados do que
seis, não?
Terminado
o choro, veio outra vez fazer queixinhas. Disse-me que um dos miúdos
tinha trazido um recado do professor. Não liguei, mas ela enfiou a
caderneta, ou lá como se chama, em frente dos meus olhos e eu acabei
por ceder, afinal a luz ainda não tinha regressado. Dei uma
espreitadela e detectei que os recados duravam há uns tempos, dois
meses para ser mais preciso. Mau comportamento, desatenção,
ausência dos trabalhos de casa efectuados, má influência sobre os
colegas... essas tretas que os psicólogos inventaram para salvar a
pele dos incompetentes.
Fui
ao quarto e a mulher estava a ralhar com o chavalo. Berrei ainda mais
alto. Parou logo com aquela treta e ficou a olhar para mim como se eu
fosse filho do diabo. Disse-lhe logo que o puto não tinha culpa que
a professora, ou o professor, não conhecia nem me dei ao trabalho de
ver a assinatura, não tivesse mão neles. Não gostei. De caminho a
culpa era minha, não? Os putos vão para a escola para aprender.
Nem
dormi nessa noite.
No
dia seguinte fui lá tirar satisfações, afinal era uma professora,
e por pouco não lhe enfiei dois socos. Ainda arrebitou cabelo! Mais
tarde soube que não teve tanta sorte com os pais da Quininha, também
aqui da Biquinha. Levou com uma cadeira nas costas e meteu baixa.
Mas
ficou tudo bem porque o professor substituto era um gajo porreiro.
Não chateava nem nada, nem trabalhos de casa mandava. E assim é que
é! Conseguia coordenar o seu tempo de forma a dar a matéria toda
quando devia. A ver se lhe ofereço uma mini no Natal.
4 comentários:
E a saga continua...Jaime consegue fazer-me rir mesmo sem eu querer.É que é assim mesmo.Quem os conhece como eu...
Vasco mais uma vez :fantástico!
um dia ainda ofereço uma mini ao Jaime...
Tenho seguido e tenho-me divertido, mas também apreciado a particularidade da escrita...
Um Jaime retratado como se fora um "tipo social", género Gil Vicente, devidamente enquadrado no tempo de hoje e numa realidade que grassa por aí...
:)
Obrigado.
Ângelo, acho que a Odete também quer oferecer uns tremoços ao Jaime... e duvido que ele se fique por uma mini apenas...
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