14/02/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JAIME – PARTE VIII

E ainda dizem que a justiça não funciona em Portugal. Funciona e de que maneira! Depois de ter ocorrido aquele pequeno incidente com o meu grande amigo Armando, Deus preserve a sua alma, fui encarcerado numa esquadra qualquer na cidade do Porto. Sinto-me revoltado porque não tive a oportunidade de me despedir convenientemente da minha mulher e dos meus filhos, eu que recusei trabalho vezes e vezes sem conta para acompanhar o crescimento deles. Levaram-me como se fosse uma espécie de criminoso sem escrúpulos. Eu tenho sentimentos! Gosto de me rir dos outros; gosto de sentir a cerveja gelada a descer pelo meu organismo abaixo; gosto de dar palmadas e receber oferendas dos meus colegas; gosto de pensar e criticar a sociedade.
Porra! Eu sou um ser humano!
Nesse momento, enfiado numa cela de poucos metros quadrados, só e abandonado, comecei a gritar o mais alto que pude. Peguei nos poucos objectos que tinha à mão e atirei-os por tudo o que era canto. Até que vieram dois agentes e me cravaram com um cassetete por baixo do queixo, dirigindo-me palavras pouco amigáveis.
Explicaram-me que eu precisava de companhia e colocaram-me num espaço maior, mas ocupado por mais três indivíduos. Parecia ser malta porreira, porém, nenhum deles era da Biquinha.
Meti conversa com eles, mas apenas dois falaram comigo. O outro manteve-se quieto, olhando permanentemente na minha direcção como se eu lhe tivesse feito alguma coisa. Um deles, o Chico, contou-me que estava detido por ter assaltado um prostituto junto ao Castelo do Queijo, obrigando-o, em seguida, a levantar dinheiro no multibanco mais próximo. O gajo acedeu, mas, junto ao banco, teve um ataque cardíaco e morreu ali mesmo. Dei os meus pêsames ao Chico, não pelo facto de o prostituto ter sucumbido, mas pelo azar que teve ao ser apanhado pelas câmaras de segurança. Se o gajo tivesse caído 2 segundos antes e 1 metro atrás, ele ainda andava por aí na boa vida. O outro, o Zeca Zarolho, tinha uma história mais simples. Foi apanhado a roubar jantes pela polícia e vazou um olho a um dos bófias que o tinha surpreendido, um par de meses antes. Percebi então por que se auto-intitulara de Zarolho, quando tinha ambos os olhos intactos. Entretanto, tentei perceber o que tinha acontecido com o gajo que não falou comigo. Em vão.
Um dias após a minha detenção, fui visitada pela advogada que me calhara em graça. Era bem boa! Chamava-se Rosalina e tinha o dom da palavra. A conversa dela fluía como as melodias criadas por Mozart - romântico, não é? Nunca ouvi Mozart, mas acho que estou apaixonado, pelo que mereço um desconto – e logo me prometeu que num bufo me tiraria dali. Não sei a razão ao certo, todavia as suas frases eram tão límpidas e seguras que só podiam ser verdade.
Depois de ela ter ido embora, balançado aquele rabo enfiado num saia-casaco dois números abaixo do ideal e ao qual me atiraria com unhas e dentes, fiquei tão bem disposto que me fartei de brincar com os meus novos amigos. Rimos e gracejámos imenso. Cheguei ao ponto de escrever na parede, com cuspo ensanguentado depois de esfregar freneticamente as gengivas, 'aqui esteve Carlos Cruz', apesar de saber que o gajo havia sido detido em Lisboa. Mas há muito burro por aí e alguém havia de acreditar, ou pelo menos duvidar.
A noite chegou e com ela o terror. O Chico e o Zeca ressonavam quando senti uma mão enorme a apertar-me o nariz e a boca. Eu estava deitado no meu colchão de barriga para baixo e imobilizado por uma força que me confundia e me impedia de reagir. Nada podia fazer. Então o gajo que afinal não era mudo sussurrou-me ao ouvido. Explicou-me que era cunhado de um primo afastado da mulher do Armando. Disse-me que ele não tinha morrido e que até recuperava bem. E ao mesmo tempo que me puxou as calças um pouco para baixo, desnudando-me as nalgas, aconselhou-me a estar quietinho – sim, quietinho, a sua voz denotava até alguma ternura –, que tudo passaria num instante.
Felizmente passou num ápice. Ao sair de cima de mim deu-me um beijo na orelha e argumentou que 'aquela' tinha sido pelo Armando. Não sei se a experiência se voltaria a repetir, mas esperei que Rosalina fosse rápida a tirar-me dali para fora.


http://vascoricardo.blog.com

2 comentários:

Liliana Novais disse...

tens um selo no meu blog O sofá dos livros

Guiomar Ricardo disse...

Eu continuo a adorar este troglodita da era moderna...