CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JAIME
– PARTE VIII
E
ainda dizem que a justiça não funciona em Portugal. Funciona e de
que maneira! Depois de ter ocorrido aquele pequeno incidente com o
meu grande amigo Armando, Deus preserve a sua alma, fui encarcerado
numa esquadra qualquer na cidade do Porto. Sinto-me revoltado porque
não tive a oportunidade de me despedir convenientemente da minha
mulher e dos meus filhos, eu que recusei trabalho vezes e vezes sem
conta para acompanhar o crescimento deles. Levaram-me como se fosse
uma espécie de criminoso sem escrúpulos. Eu tenho sentimentos!
Gosto de me rir dos outros; gosto de sentir a cerveja gelada a descer
pelo meu organismo abaixo; gosto de dar palmadas e receber oferendas
dos meus colegas; gosto de pensar e criticar a sociedade.
Porra!
Eu sou um ser humano!
Nesse
momento, enfiado numa cela de poucos metros quadrados, só e
abandonado, comecei a gritar o mais alto que pude. Peguei nos poucos
objectos que tinha à mão e atirei-os por tudo o que era canto. Até
que vieram dois agentes e me cravaram com um cassetete por baixo do
queixo, dirigindo-me palavras pouco amigáveis.
Explicaram-me
que eu precisava de companhia e colocaram-me num espaço maior, mas
ocupado por mais três indivíduos. Parecia ser malta porreira,
porém, nenhum deles era da Biquinha.
Meti
conversa com eles, mas apenas dois falaram comigo. O outro manteve-se
quieto, olhando permanentemente na minha direcção como se eu lhe
tivesse feito alguma coisa. Um deles, o Chico, contou-me que estava
detido por ter assaltado um prostituto junto ao Castelo do Queijo,
obrigando-o, em seguida, a levantar dinheiro no multibanco mais
próximo. O gajo acedeu, mas, junto ao banco, teve um ataque cardíaco
e morreu ali mesmo. Dei os meus pêsames ao Chico, não pelo facto de
o prostituto ter sucumbido, mas pelo azar que teve ao ser apanhado
pelas câmaras de segurança. Se o gajo tivesse caído 2 segundos
antes e 1 metro atrás, ele ainda andava por aí na boa vida. O
outro, o Zeca Zarolho, tinha uma história mais simples. Foi apanhado
a roubar jantes pela polícia e vazou um olho a um dos bófias que o
tinha surpreendido, um par de meses antes. Percebi então por que se
auto-intitulara de Zarolho, quando tinha ambos os olhos intactos.
Entretanto, tentei perceber o que tinha acontecido com o gajo que não
falou comigo. Em vão.
Um
dias após a minha detenção, fui visitada pela advogada que me
calhara em graça. Era bem boa! Chamava-se Rosalina e tinha o dom da
palavra. A conversa dela fluía como as melodias criadas por Mozart -
romântico, não é? Nunca ouvi Mozart, mas acho que estou
apaixonado, pelo que mereço um desconto – e logo me prometeu que
num bufo me tiraria dali. Não sei a razão ao certo, todavia as suas
frases eram tão límpidas e seguras que só podiam ser verdade.
Depois
de ela ter ido embora, balançado aquele rabo enfiado num saia-casaco
dois números abaixo do ideal e ao qual me atiraria com unhas e
dentes, fiquei tão bem disposto que me fartei de brincar com os meus
novos amigos. Rimos e gracejámos imenso. Cheguei ao ponto de
escrever na parede, com cuspo ensanguentado depois de esfregar
freneticamente as gengivas, 'aqui esteve Carlos Cruz', apesar de
saber que o gajo havia sido detido em Lisboa. Mas há muito burro por
aí e alguém havia de acreditar, ou pelo menos duvidar.
A
noite chegou e com ela o terror. O Chico e o Zeca ressonavam quando
senti uma mão enorme a apertar-me o nariz e a boca. Eu estava
deitado no meu colchão de barriga para baixo e imobilizado por uma
força que me confundia e me impedia de reagir. Nada podia fazer.
Então o gajo que afinal não era mudo sussurrou-me ao ouvido.
Explicou-me que era cunhado de um primo afastado da mulher do
Armando. Disse-me que ele não tinha morrido e que até recuperava
bem. E ao mesmo tempo que me puxou as calças um pouco para baixo,
desnudando-me as nalgas, aconselhou-me a estar quietinho – sim,
quietinho, a sua voz denotava até alguma ternura –, que tudo
passaria num instante.
Felizmente
passou num ápice. Ao sair de cima de mim deu-me um beijo na orelha e
argumentou que 'aquela' tinha sido pelo Armando. Não sei se a
experiência se voltaria a repetir, mas esperei que Rosalina fosse
rápida a tirar-me dali para fora.
http://vascoricardo.blog.com
2 comentários:
tens um selo no meu blog O sofá dos livros
Eu continuo a adorar este troglodita da era moderna...
Enviar um comentário