CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JAIME
– PARTE IX
Os
dias que se passaram até ao julgamento foram tortuosos. Tão
depressa me sentia divertido por não ter nada para fazer, como o meu
amigo silencioso, o tal que era parente afastado do Armando, me
encarava como se eu fosse um pedaço de chocolate gigante. Juro até
que o vi passar a língua pelos lábios numa altura em que me voltei
de repente. Contudo, certo dia, um polícia levou-o. Antes de partir,
ele continuou mudo, mas atirou-me um beijo. Nunca soube o que ele
tinha feito, nem por que se encontrava ali.
E
lá fiquei com os meus dois novos amigos, na borga em plena cela. O
tempo até se passava bem. Tínhamos comida e cama e não havia
filhos para sustentar nem mulheres para aturar. Durante esse período
até pensei que me adaptava na boa àquela vida. E a família? Ela
que se amanhasse.
Todavia
a única coisa que me dava vontade de sair dali para fora era o raio
da advogada, a Rosalina. Tudo bem que me tinha sido atribuída pelo
Estado. Mas eu só podia ver aquela dádiva como um sinal de Deus.
Sempre que me visitava sorriamos um para o outro, e eu fiquei com a
certeza de que ela queria algo de mim. Deduzi que eu não lhe era
indiferente. Prometeu-me liberdade para breve e eu jurei-lhe
silenciosamente amor eterno. Apesar de falar um pouco alto, a voz
dela era rouca, quase doce. E o seu rabo era cheio e redondinho. Quem gosta
de esqueletos, não é? Ela era pujante e qualquer dia havia de a
dominar.
Por
isso, devido à tal dádiva, resolvi tornar-me religioso. Roubei uma
bíblia a um gajo numa cela ao lado por entre as grades e li tudo em
quatro dias. Disse ao Chico e ao Zeca Zarolho para seguirem o meu
exemplo, se bem que eles desataram à gargalhadas, questionando se eu
não sentia saudades do mudo para estar a agir daquela forma
estranha. Eu encolhi os ombros e nada fiz. Afinal eles eram dois e eu
não tinha uma garrafa de cerveja na mão.
Isolei-me
por um par de dias, tentando aceitar a palavra do Senhor. Estava eu a
ler 'Não cobiçarás a mulher do próximo', quando um bófia me
chamou, para ir ter com a doutora Rosalina.
Na
sua companhia, não como eu desejava, explicou-me que tinha uma
manobra de defesa que acreditava que ia resultar. Combinámos uma
estratégia e ela comunicou-me aquilo que eu tinha de dizer ao juiz e
ao advogado que me iria tentar tramar. E eu ouvi obedientemente. A
Rosalina disse-me que o julgamento seria na manhã que se seguiria,
mas eu perguntei-lhe se era casada. Ela disse que sim e devolvi a
bíblia ao outro recluso daí a dez minutos, pois já não acreditava
na palavra do gajo, ou lá o que é, a quem chamam deus.
E
então, às 9H00 do dia seguinte, apresentei-me em tribunal com o
mesmo fato com que visitara os gajos dos bancos.
Tudo
estava a correr bem. A Rosalina foi argumentando que eu me tinha
passado e sido alvo de uma provocação, mas que no fundo era uma
pessoa generosa, cumpridora e dedicado à família. Assumiu também
que o Armando só tinha apanhado dezasseis pontos e que tinha
escorregado e caído em cima do bocado de vidro que a minha mão
segurava, sendo que o gesto não tinha partido da minha parte.
Explicou também que ele tinha antecedentes criminais e que no meu
caso, apesar de ter tido problemas fiscais e económicos, a violência
não fazia parte do meu historial.
Ela
mexia-se como uma sereia naquele tribunal. Toda a gente a escutava.
Era como se ela fosse o show
principal do espectáculo. A dada altura, depois de discursar,
aproximou-se de mim e piscou-me o olho. Sussurrou-me ao ouvido,
assumindo que estava no papo, que não apanharia mais do que um par
meses.
E
assim seria se o outro advogado não se tivesse metido comigo.
Chamou-me cobarde, falhado, devedor, ralé e outras coisas, apesar da
Rosalina ter protestado. Eu aguentei até uma determinada afirmação.
De repente, o gajo, alto e novo, disse que eu não era homem. Aí
passei-me! Dei um pinote, galguei todos os obstáculos até chegar ao
gajo e, deliciado pela cara de pânico do engravatadinho, espanquei-o
tanto quanto pude.
Não
foi por mim que tive aquela atitude, mas por causa do pessoal da
Biquinha que estava a assistir ao julgamento. Estava lá o pessoal
todo, incluindo família e vizinhos, e nunca toleraria que me
chamassem maricas à frente deles.
Quando
me levaram a Rosalina estava de cabeça entre as mãos, mas o pessoal
da Biquinha aplaudia-me de pé perante os protestos do juiz.
Senti-me
um herói. Preso, mas herói. E ainda mais vaidoso fiquei quando um
dos bófias me tirou uma foto quando me enfiou novamente atrás das
grades, possivelmente para vender às revistas. Só lhe pedi em troca
uma mini e um cigarro. Respondeu-me que não era um frigorífico, mas
que tabaco se arranjava. Na hora do flash tentei
não sorrir, porque homem que é homem tem de ter cara de mau.
5 comentários:
Este Jaime é mesmo do piorio...agora vai passar a vida atrás das grades.
Adorei este remate que teve direito a foto e tudo.
Que irá passar-se a seguir ?!Terá direito a recurso,qual o veredicto final,os filhos terão direito à reinserção social por terem o pai preso?!...
Ó Vasco não nos faças esperar muito,please!
Adorei!
E esta imagem está fantástica!
o fim do Jaime, é uma pena! mas será que podemos contar com outras novidades?
Vasco e que tal reunires as nove partes do Jaime e colocares como um conto no goodreads.com?
:)
Sim, Ângelo, as Crónicas não param. Já para a próxima semana teremos uma nova parte.
Quanto à reunião das partes... essa será a última surpresa! ^_^
Ate que podias arranjar um final feliz. coitado, mesmo que seja um final piroso, deixa-o rir por ultimo... eheh, eu ja ri. parabens, muito bom Vasco
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