CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
GRAÇA
– PARTE IX
(Nota: qualquer semelhança entre o conteúdo deste texto e a realidade continua a ser, obviamente, pura coincidência)
Hoje
não me apetece falar de política. Vou antes falar da minha vida
pessoal para que seja mais fácil perceberem quem é a verdadeira
Graça.
Comecemos
pela minha casa nova. É muito recente e foi construída num terreno
que, na altura em que o adquiri, desvalorizou 500% devido a um
problema ambiental. Felizmente, no dia a seguir à escritura, o seu
preço por metro quadrado passou a ser um dos mais elevados no
concelho. Sorte, ah? Sorte em politiquez tem outro significado que
não vou aqui revelar.
O
interior da habitação foi decorado por um designer do Quénia
muito famoso. Na verdade, é mais famoso pelo facto de ser procurado
por atentado ao pudor na via pública em Nairobi, e também por
comprar diamantes no mercado negro. Mas nós, aqui, demos-lhe asilo
político. Afinal ele é mesmo bom, uma mais-valia para a nação.
Além do mais é muito baratinho - por vezes até faz as coisas de
borla.
O
jardim é tratado por um argelino. É um bom moço, para surdo-mudo
claro. Fui muito generosa com ele, tirei-o da miséria. Ainda assim é
um óptimo investimento. Não paga impostos nem recebe ordenado. Mas
é feliz, tem um tecto e muito trabalho.
O
meu marido é consultor de uma empresa qualquer, uma tal de John &
Smith & Martins & Sousa Enterprise de Portugal. Trata-se de
uma sociedade entre um dono de uma casa de apostas americana, um
canadiano que também detém um empreendimento turístico que envolve
a captura de ursos brancos, um dono de um banco com sede em
território nacional e um português radicado na Venezuela
responsável pela distribuição de uma grande variedade de espécies
de carnes. Não sei o que é que ele consulta nessa empresa, mas
ganha bem - mais do que eu - e isso é que é importante.
Toda
a criançada da família - minha e das minhas irmãs - estudam no
colégio de freiras. É quase gratuito - só pagamos o seguro escolar
e as idas à praia - porque eu sei uns segredinhos acerca delas, e
nem é preciso pedir desconto. Basta um olhar cúmplice para que a
madre saiba que eu sei aquilo que elas querem que não se saiba. Não
é nada de muito grave, mas os religiosos são uns picuinhas do
caraças.
Os
carros são topo de gama. Um foi oferecido por um construtor alemão
que ganhou um consórcio na Beira Interior - uns porreiraços estes
centro-europeus. Outro, um jipe, foi uma prenda de um stand por
termos patrocinado uma prova nacional de todo-terreno. A carrinha
veio cá parar com o livrete no meu nome e a chave na ignição,
juntamente com um grande laço cor-de-rosa - ainda hoje não sei quem
foi a alma caridosa que mo ofereceu, embora desconfie do
Rúben-mãos-levezinhas. E ainda tenho uma charrete e dois cavalos,
mas esses estão na casa de férias registada no nome da minha mãe.
Felizmente, sou poupada. Só ando com eles quando os carros do
governo estão ao mesmo tempo na oficina e os motoristas se encontram
ambos de baixa ou com as licenças de paternidade activas.
As
roupas que visto são feitas por encomenda em Paris e em Barcelona.
Como alta representante da nação, tenho de andar bem apresentada.
São um bocado caras e até podia mandar fazer a indumentária no
Paquistão ou no Bangladesh, mas ouvi dizer que lá trabalham
crianças de 12 anos durante 14 horas por dia. E eu sou uma defensora
dos direitos humanos. Todos sabemos que em França e em Espanha as
autoridades que regulam a legislação laboral são muito competentes
e sérias.
As
férias que tiro anualmente são oferecidas pelo país a quem,
anualmente, compramos mais serviços. No ano passado, o meu
antecessor foi para umas ilhas espanholas, mas este ano tenciono
viajar até a América do Sul - talvez possa assim dar um saltinho à
Colômbia.
Quanto
a compras, tenho crédito ilimitado numa cadeia de hipermercados. O
mesmo sucederia com o gasóleo se andasse com as minhas viaturas, com
os livros caso eu lesse, com entradas para espectáculos se metesse
os pés em teatros e cinemas. Mas aproveito quando vamos jogar golfe
nos resorts espalhados pelo país.
Ah!
Esperem lá! Estive sempre a falar de política até agora!
Falemos
então da parte da minha vida na qual a política não está
associada.
Pois
bem, tenho uma tartaruga. Não é muito grande. É verde e comprei-a
numa altura difícil da minha vida. Tinha enxaquecas e não era capaz
de aguentar o choro das crianças. E é tudo. Ainda dizem que a
política não consome a vida de quem está permanentemente preso a
ela. E ainda acham que temos regalias a mais.
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