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23/01/2014

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CARDOSO – PARTE IX


No dia seguinte à recriação do “Lobijovem” acordei com a polícia a bater à porta da igreja. Gritei que se queriam falar com o padre Cardoso que batessem na porta da casa dele. Eles disseram que já o tinham feito mas que não o encontraram, pelo que só podia estar ali.
Eu praguejei e abri as portas da casa de Deus. Eram dois, os agentes da autoridade, ambos da GNR. Tinham as botas engraxadas e óculos de sol à aviador. Entraram e perguntaram a razão pela qual se sentia por toda a parte um cheiro tão intenso a álcool. Eu fui sincero ao responder que depois do “Lobijovem” tínhamos dado uma festa e que se não acreditavam que podiam ver a máquina de pressão e os barris de cerveja pousados em cima do altar. Eles disseram que acreditavam e eu respondi que era bom sinal, pois um homem de Deus nunca mente.
Um deles espreitou e perguntou quem era a velha que estava deitada no chão a um par de metros de mim. Encolhi os ombros e expliquei que a dona Amélia ficava doida quando via um órgão sexual masculino de dimensões exageradas e que se enfrascava até à inconsciência sempre que isso acontecia.
Depois estiveram uns minutos a avaliar uns quantos ressacados que ressonavam e se largavam quando o ronco se relevava mais profundo. Estavam todos deitados no chão, sem qualquer ordem nem orientação, como se tivessem caído redondos no chão, que nem os tordos que eu costumava caçar com a minha Magnum 44.
Um dos polícias tirou os óculos e encarou-me. “Parece que a festa do ano decorreu mesmo aqui.” Eu confirmei com a cabeça. “Porque é que não fomos convidados?”
Eu engasguei-me. Fiquei fodido, confesso. Como me podia ter eu esquecido de convidar a malta da polícia? Afinal, também eles eram filhos de Deus; até eles! Pedi-lhes perdão e prometi que me chicotearia mais tarde quando tivesse vagar. Eles disseram que não era preciso, que bastava um fininho para atenuar a tristeza que lhes invadia a alma.
Eles entraram e eu segui-os em direcção ao altar. Os agentes foram espreitando o pessoal deitado. Até que um deles, o mais velho, parou, especado, mirando uma mulher de cabelos ruivos. “Maria?” disse. “Conhece a Maria vai-com-todos?”, inquiri. Ele olhou-me de soslaio e respondeu: “A Maria é a minha esposa, que história é essa de ir-com-todos?” Eu tremi por dentro. Não queria que o senhor agente soubesse que ela ia com todos. Não era minha intenção aborrecê-lo. Depois lembrei-me que eu e ela havíamos tido uma conversa há uns tempos, tendo rido às gargalhas devido à estranha ironia do destino. “Eu disse vai-com-todos?” Ele confirmou com um breve aceno. “Então percebeu mal, eu disse Maria Viatodos; Viatodos, freguesia de Barcelos, não é a terra dela?” O polícia semicerrou os olhos e afirmou que sim, que eu tinha razão. Porém, voltou a insistir, querendo saber o que fazia ela ali. Eu tornei a encolher os ombros e prometi-lhe que quando acordasse a levaria para o confessionário, e que mais tarde lhe contaria tudo, quebrando o voto de silêncio relativamente aos pecados alheios.
Os agentes continuaram até ao altar e eu servi-lhes cerveja em copos de plástico.
Ambos beberam até que o mais novo, o que não era casado com a Maria Viatodos, percebeu que alguma coisa se encontrava fora do normal. Aproximou-se de alguns dos paroquianos deitados e disse: “Que líquido vermelho é este?” Eu respondi calmamente: “Groselha, a maior parte das patroas não gosta de cerveja pura.” Ele argumentou que o líquido estava junto de homens e não de mulheres. Eu contrapus, assumindo que eram homens por fora mas mulheres por dentro. E então ele detectou outro pormenor: “E que buracos são estes nestes corpos banhados a groselha?” Eu olhei e esperei um segundo para me mostrar mais confiante. “Buracos normais, estivemos a jogar aos dardos ontem à noite.” Ele perguntou-me se tínhamos jogado utilizando pessoas como alvo. Eu afirmei que sim, que era muito divertido e que era bastante comum em salas de tortura e assim.
Eles ficaram mais descansados e partiram.
Eu suspirei de alívio, feliz por não terem detectado que os buracos se deviam às balas disparadas pela minha Magnum 44 na noite anterior e por não terem reparado no pêlo do uivador sucumbido que se encontrava espalhado por toda a parte.
Então acordei os paroquianos e enxotei-os, ordenando que levassem os corpos dos defuntos para o rio mais próximo, a 7 quilómetros dali.
Depois sentei-me em cima da máquina de finos que por sua vez estava em cima do altar. Caí. Mas tal como Jesus Cristo, levantei-me.
Deduzi que a polícia acabaria por voltar e que um dos paroquianos daria com a língua nos dentes, pelo menos um dos que se lembraria do que havia sucedido.
Suspirei de tristeza por, afinal, a vida não ser um filme e nem sempre nos safarmos fosse de que forma fosse.
Por isso, assim que limpei a igreja, enfiei-me no meu quarto a ver televisão, aguardando ansiosamente que algum filme me dissesse como haveria de solucionar aquele imbróglio.
Mas isso fica para a próxima.


14/11/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JEREMIAS – PARTE IX


E chegamos assim à última profissão acerca da qual vos quero falar. Galguei algumas que me deixaram más recordações, como quando fui peixeiro - cujo cheiro esteve impregnado durante meses por baixo das minhas unhas - ou toureiro - maldito animal que me invadiu a retaguarda.
Nunca vos contei, mas fui criado num meio bastante religioso. O meu pai acreditava que via Deus sempre que o fundo de uma garrafa qualquer se erguia diante do seu nariz. A minha mãe também acreditava que via Deus sempre que não via o meu pai. Durante anos ele disse “água-benta para o Chico, maravilha” sempre que emborcava um gole de álcool. Ainda hoje julgo que o conteúdo de cada recipiente de vidro era o seu espírito-santo. Enquanto decorria o mesmo período ela dizia “obrigada, meu Deus, por apareceres para o Chico sob a forma de vinho, assim enfia-lo num beco em vez de o enfiares na minha cama”.
Podem pensar que tive uma infância infeliz. A verdade é que não tive. Também é certo que não se deveu a eles, mas sim ao padre Cardoso, que foi um pai, um amigo, um irmão, um colega, um parceiro.
Foi ele, o padre Cardoso, que me iluminou o caminho.
Ainda era adolescente quando fui seu sacristão, a minha primeira profissão, aquela que desenvolvi durante mais tempo e que mais gostei de exercer.
As pequenas partes que compunham o todo eram divinais.
O incenso das missas, que mais fazia lembrar aqueles pauzinhos comprados na loja chinesa junto à igreja que a minha primeira amante acendia para disfarçar o cheiro a sexo selvagem praticado na cama em que também dormia o marido quando eu não estava lá. Chamava-se Jaciara.
O sabor das hóstias, feitas pelo padeiro que por acaso era marido da Jaciara. Quer dizer, segundo marido porque o primeiro estava a passar férias em Carandiru. Mais tarde até veio atrás dela para Portugal e tornou-se no melhor amigo do padeiro. Dizia que ela estava mais feliz do que no passado, tendo ficado grato ao homem. Ficaram amigos e o brasileiro acabou por instalar-se na casa do padeiro. Passados uns meses meteu o padeiro fora da sua própria casa quando descobriu que afinal não era ele quem fazia a mulher feliz mas sim um gajo vestido de branco. Era eu, claro, mas ele pensou que fosse o farmacêutico, que, por sua vez, nunca entendeu a razão pela qual o primeiro marido da Jaciara se revelava sempre tão simpático com ele - “talvez seja homossexual”, comentou ele certa vez comigo.
O vinho delicioso, que depois de eu e o padre Cardoso ficarmos até às tantas a mamar do gargalo fazia com que desvendássemos os segredos um do outro. Ele sabia os meus porque eu confessava-me semanalmente ou quando o pecado me tentava. Os desabafos dele é que me deixavam divertido. Quem diria que um homem com aquela santidade - chamemos-lhe assim - foi capaz de dar um valente coçório num vendedor de caixões por ter enganado uma família quanto à madeira usada no caixão do defunto ou de provocar um pequeno incêndio na própria igreja para que a seguradora metesse um chão novo - o resto era feito de pedra...?
As filas de gajas sequiosas por um consolo. Foi nesse tempo que deixei de ser esquisito se é que alguma vez o fui. Gaja é gaja quando não é não gaja da mesma forma que a água é água quando não é vinho. Bem, também pode ser sumo, cerveja e muitas outras coisas. Mas não interessa. Fica a ideia. Nessa altura eu era o consolo das gajas que não se sentiam gajas apesar de serem gajas. A verdade é que as comia por elas. Porque um mundo onde uma gaja não se sinta gaja é como uma videira sem uvas, uma cama sem lençóis ou uma praia sem areia. Existem, mas não é a mesma coisa. Portanto, eu era uma espécie de salvador da pátria, sendo eu o D. Sebastião e o gajedo paroquiano.
A bíblia, que tanto me ensinou, foi o meu suporte. A palavra do senhor sempre me acompanhou e é óptima para nos safarmos em qualquer situação. Se repararem há algo na bíblia que nos ajuda a sair de qualquer encrenca que seja.
Os conselhos do padre Cardoso. Ele é um gajo prático. Não fazem ideia.
Há tanta coisa que sinto falta dos tempos de sacristão que nem imaginam. O ordenado era irrisório mas havia sempre a caixa das esmolas para compor a coisa quando queria ir passar um fim de semana no Gerês ou arranjar a minha Casal Boss.
Foi também nessa altura que aprendi que podia ser tudo o que quisesse até que certo dia o padre Cardoso me disse “ergue as asas e voa, meu filho, que já estás a meter nojo”. Eu bati as asas com força e parti para longe, para bem longe da mira da caçadeira que o padre apontava na minha direcção.
Aquele Padre Cardoso... agora que penso melhor, acho que nunca gostei dele.






11/09/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
 
GRAÇA – PARTE IX

(Nota: qualquer semelhança entre o conteúdo deste texto e a realidade continua a ser, obviamente, pura coincidência)

Hoje não me apetece falar de política. Vou antes falar da minha vida pessoal para que seja mais fácil perceberem quem é a verdadeira Graça.
Comecemos pela minha casa nova. É muito recente e foi construída num terreno que, na altura em que o adquiri, desvalorizou 500% devido a um problema ambiental. Felizmente, no dia a seguir à escritura, o seu preço por metro quadrado passou a ser um dos mais elevados no concelho. Sorte, ah? Sorte em politiquez tem outro significado que não vou aqui revelar.
O interior da habitação foi decorado por um designer do Quénia muito famoso. Na verdade, é mais famoso pelo facto de ser procurado por atentado ao pudor na via pública em Nairobi, e também por comprar diamantes no mercado negro. Mas nós, aqui, demos-lhe asilo político. Afinal ele é mesmo bom, uma mais-valia para a nação. Além do mais é muito baratinho - por vezes até faz as coisas de borla.
O jardim é tratado por um argelino. É um bom moço, para surdo-mudo claro. Fui muito generosa com ele, tirei-o da miséria. Ainda assim é um óptimo investimento. Não paga impostos nem recebe ordenado. Mas é feliz, tem um tecto e muito trabalho.
O meu marido é consultor de uma empresa qualquer, uma tal de John & Smith & Martins & Sousa Enterprise de Portugal. Trata-se de uma sociedade entre um dono de uma casa de apostas americana, um canadiano que também detém um empreendimento turístico que envolve a captura de ursos brancos, um dono de um banco com sede em território nacional e um português radicado na Venezuela responsável pela distribuição de uma grande variedade de espécies de carnes. Não sei o que é que ele consulta nessa empresa, mas ganha bem - mais do que eu - e isso é que é importante.
Toda a criançada da família - minha e das minhas irmãs - estudam no colégio de freiras. É quase gratuito - só pagamos o seguro escolar e as idas à praia - porque eu sei uns segredinhos acerca delas, e nem é preciso pedir desconto. Basta um olhar cúmplice para que a madre saiba que eu sei aquilo que elas querem que não se saiba. Não é nada de muito grave, mas os religiosos são uns picuinhas do caraças.
Os carros são topo de gama. Um foi oferecido por um construtor alemão que ganhou um consórcio na Beira Interior - uns porreiraços estes centro-europeus. Outro, um jipe, foi uma prenda de um stand por termos patrocinado uma prova nacional de todo-terreno. A carrinha veio cá parar com o livrete no meu nome e a chave na ignição, juntamente com um grande laço cor-de-rosa - ainda hoje não sei quem foi a alma caridosa que mo ofereceu, embora desconfie do Rúben-mãos-levezinhas. E ainda tenho uma charrete e dois cavalos, mas esses estão na casa de férias registada no nome da minha mãe. Felizmente, sou poupada. Só ando com eles quando os carros do governo estão ao mesmo tempo na oficina e os motoristas se encontram ambos de baixa ou com as licenças de paternidade activas.
As roupas que visto são feitas por encomenda em Paris e em Barcelona. Como alta representante da nação, tenho de andar bem apresentada. São um bocado caras e até podia mandar fazer a indumentária no Paquistão ou no Bangladesh, mas ouvi dizer que lá trabalham crianças de 12 anos durante 14 horas por dia. E eu sou uma defensora dos direitos humanos. Todos sabemos que em França e em Espanha as autoridades que regulam a legislação laboral são muito competentes e sérias.
As férias que tiro anualmente são oferecidas pelo país a quem, anualmente, compramos mais serviços. No ano passado, o meu antecessor foi para umas ilhas espanholas, mas este ano tenciono viajar até a América do Sul - talvez possa assim dar um saltinho à Colômbia.
Quanto a compras, tenho crédito ilimitado numa cadeia de hipermercados. O mesmo sucederia com o gasóleo se andasse com as minhas viaturas, com os livros caso eu lesse, com entradas para espectáculos se metesse os pés em teatros e cinemas. Mas aproveito quando vamos jogar golfe nos resorts espalhados pelo país.
Ah! Esperem lá! Estive sempre a falar de política até agora!
Falemos então da parte da minha vida na qual a política não está associada. 
Pois bem, tenho uma tartaruga. Não é muito grande. É verde e comprei-a numa altura difícil da minha vida. Tinha enxaquecas e não era capaz de aguentar o choro das crianças. E é tudo. Ainda dizem que a política não consome a vida de quem está permanentemente preso a ela. E ainda acham que temos regalias a mais.




27/06/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
 
MOUSTAFA (e Maria e Bruno) – PARTE IX

Pois é, senhores e senhoras, ficaram a saber parte da minha vida. Foi bom ter-vos aqui comigo, para desabafar depois de ter ido para a rua. Mas agora tenho de partir, porque conquistarei outra rua, outra praça, outra cidade.
Durante este fim de semana que passou vi tumultos e mais tumultos na televisão. Tenho-me apercebido de que têm havido muitos recentemente, um pouco por todo o mundo, como os que ocorrera no Iémen, na América Central, ou na Tunísia, em pleno Sudeste Asiático - será que me voltei a enganar?, raios para a Geografia.
Porém, nestes últimos dias o povo aglomerava-se no Brasil e na Turquia. Então, a revolta interior que sempre esteve dentro de mim apelou: 'Não sejas S-A-C-I-R-D-E-M, luta com o teu povo', embora, na verdade, o povo não fosse o meu. Por isso fiz uma mochila, agarrei no dinheiro que conservava debaixo da almofada cheia de saliva seca e fiz-me à estrada.
Ia parar a história por aqui, mas como sei que não conseguiríeis aguentar, vou contá-la até ao fim - ou quase até ao fim.
Assim que parti, fiquei com fome. Parei na segunda esquina a contar do meu apartamento e sentei-me numa cadeia de fast-food cujo nome não pronunciarei, por causa da publicidade gratuita e dos direitos que uma empresa concorrente poderá eventualmente vir a pagar-me, depois de ficar famoso com a minha jornada. Mas pronto, posso adiantar-vos - só os inteligente compreenderão - que o seu símbolo é um palhaço um quanto assustador e que começa por 'Mc' - deve ter sido fundada por um DJ qualquer.
De estômago refastelado, deu-me a saudade. Liguei à Maria e ao Bruno para me acompanharem. E, logicamente, eles deixaram tudo para trás para me seguirem. Perguntaram-me onde ia e eu disse que para o Brasil ou para a Turquia. A Maria explicou-me que eu tinha de decidir para onde seguir, pelo simples facto de os países se localizarem em sítios antagónicos - não sei o que esta palavra quer dizer, mas foi a que ela usou. Perguntei-lhe se queria levar uma cabeçada por me desrespeitar, o que ela recusou gentilmente com a cabeça. Pensei durante uns minutos - poucos, claro - e supus que teria de marchar em direcção ao país em que não fosse preciso apanhar qualquer avião, devido à fobia do Bruno. Prontamente ele disse que a fobia era minha e não dele, ao que argumentei com uma cotovelada na caixa torácica e um soquito debaixo do queixo. Eu sabia que o medo era meu, mas eu ia iniciar uma revolução, logo não podia dar a conhecer ao inimigo, fosse ele quem fosse, qualquer fraqueza.
Enquanto ele cuspia sangue tive a brilhante ideia de viajar de barco.
Dirigimo-nos para as docas, à procura de um navio. Como não encontrei as bilheteiras, perguntei a uns gajos que barcos podíamos apanhar para alcançar o Brasil ou a Turquia. Eles riram-se na minha cara. Nada fiz porque eram musculosos.
Dormitámos por ali por um par de noites. Entretanto eu tinha decidido viajar para a Turquia porque no Brasil se falava brasileiro e na Turquia turco; achei que o segundo idioma fosse mais fácil pois só precisava de duas sílabas para pronunciar a palavra 'turco', enquanto que para pronunciar 'brasileiro' precisava do dobro.
Uma semana mais tarde a Maria apareceu sorridente. Disse que partiríamos para a Turquia nessa manhã. Eu beijei-a. Inquiri como tinha ela conseguido. Ela piscou o olho e explicou que tinha acordado com um manda-chuva qualquer que seguiríamos para a Turquia, via-marítima, devido a um contrato simples que conseguira. A bordo, ela satisfaria os homens que gostavam de mulheres, Bruno os homens que gostavam de homens e que eu trabalharia gratuitamente na cozinha, lavando a louça e limpando o esterco dos outros. Eu acedi, mas obriguei o Bruno a trocar de posto comigo, porque macho que é macho não trabalha de borla, muito menos em cozinhas.
Então lá fomos nós, navegando pelas águas escuras e revoltas - bonita frase, ah?. Logo na primeira noite arrependi-me ao descobri que andar de barco era pior do que de avião. Aquilo abanava por todos os lados. Mas a Maria e o Bruno foram bons para mim. Quando estávamos os três, eles pegavam em mim, um de cada lado, e sempre que a embarcação ia para a direita eles inclinavam-me para a esquerda e vice-versa. Quando não estava com eles eu ocupava-me da tripulação e, aí, eu inclinava-me para todos os lados e perdia a noção se era o barco que estava torto se eu.
Chegámos à Turquia e a Maria levou-nos para a cidade onde os manifestantes lutavam pelos seus direitos. Contudo, a serenidade reinava. Dormimos naquela praça famosa durante uma série de noites. Primeiro pensei que o pessoal apenas se manifestava durante o fim de semana porque durante a semana tinham de se levantar cedo para trabalhar e deixar os filhos na escola. Depois percebi que também durante o período de descanso ninguém aparecia para queimar caixotes do lixo e atirar pedras à autoridade.
Fiquei desiludido pois parecia que o povo tinha deixado de acreditar.
Por isso, roubei um lenço numa loja e tapei a cara com ele - percebi pois a razão pela qual o destino resolvera tratar-me por Moustafa. Rasguei a t-shirt do corpo e gritei para dois polícias que a vida era uma merda. Eles olharam para mim e riram. Disseram qualquer coisa que não entendi e voltarem as costas.
Eu fiquei chateado e pensei que devia ter ido para o Brasil porque não percebia nada do que eles diziam.
Revoltado por viver num mundo que não compreendia, ateei fogo a um carro e comecei a lutar pelos meus direitos. Foi muito fixe, dado que numa questão de minutos vi-me envolvido por uma multidão que se juntara a mim.
Aquilo estava ao rubro. Lutámos durante semanas. Apanhei bastonadas e mandei garrafas de álcool a arder aos bófias e aos edifícios estatais. Senti-me bem por fazer parte da resistência - ao quê não me perguntem, mas isso era secundário.
Mas tudo o que é bom acaba. Fiquei lixado mas era mesmo assim. Andámos os três pelas ruas a ver o que o futuro nos reservava. A Maria acabou por casar com um vendedor de gelados com o dobro de sua idade e cego de uma vista. O Bruno decidira seguir um líder religioso que tinha o dom da palavra, não obstante o que ele dizia me fosse imperceptível, e provavelmente a Bruno também.
Vi-me sozinho lá. Depois descobri que a Graça tinha entrado para o governo, para ministra da educação. Decidi, portanto, regressar para ver se me arranjava um emprego, talvez para professor de Geografia, disciplina que eu sempre dominara.



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18/04/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


ROSALINA – PARTE IX


Sonhei durante noites a fio. Nas primeiras vezes não me recordava do conteúdo, apenas acordava transpirada, exausta e com uma respiração ofegante. Depois fui-me lembrando pontualmente, de um cenário escuro aqui, de um homem de rosto tapado ali, uma palmada suave, um gritinho agudo. Então, nas últimas noites tudo se tornou mais claro. Eu vinha sonhando com um homem que me preenchia por completo – bem, preenchia mesmo.
Tinha sido assim desde o último funeral a que assistira.
O homem foi-se tornando cada vez mais nítido e real até que ontem, ou melhor, hoje de manhã, se fez luz. E só há poucas horas soube que tinha de o ter. Ele era o chefe do serviço dos correios - vi a cara dele no sonho, quando nos beijávamos loucamente encostados a uma laranjeira. Pensei no seu nome, mas não descobri qual era. Afinal ele era chefe, logo não usava aquele crachá que mostrava ao mundo que as Marias se chamavam Marias e os Antónios se chamavam Antónios, embora por vezes fossem conhecidos por Tones, Toninhos Toneis ou Tós – como os autocarros. Toy, porém, só conheço um – vocês sabem, aquele que quando era magro tinha um cabelo à camionista, mas que agora que o cortou decentemente engordou dezenas de quilos.
Na verdade não me interessa o nome dele. Prefiro tratá-lo mesmo por 'chefe', 'boss' ou mesmo 'el jefe' – 'el jefe de mi corazon', gosto disto! Podia ter um aspecto mais macho, estilo ibero-latino; se não fosse pálido nem baixote e não tivesse ar de quem pede que lhe enfiem uma trela para mexer o rabo até seria mais fácil tratá-lo dessa forma. Mas, se a montanha não vai a Maomé, Maomé vai à montanha. E eu não sou a montanha. E ele será 'el jefe'.
Portanto, nesta manhã chuvosa e friorenta, vesti uma saia preta e travada, uma blusa branca e uma gabardina bege. Tive azar. Mal saí de casa a saia travou-me em demasia o ritmo da marcha e impediu que me equilibrasse quando escorreguei num par de folhas húmidas que haviam caído das árvores. Voltei a casa e troquei a saia por um par de calças de cabedal castanho – tudo para dizer que continuava boa.
Quando cheguei aos correios tirei duas senhas de cada letra disponível, do A ao E. Enquanto aguardava, retirei uma série de folhas em branco que tinha guardado dentro da mala e enfiei três delas noutros tantos envelopes verdes e brancos expostos nas prateleiras. No remetente, escrevi moradas ao acaso. Depois esperei que a minha vez chegasse. Quer dizer, aguardei por sete ocasiões que a minha vez chegasse. Os funcionários eram quase dez, e 'el jefe' atendia apenas no primeiro balcão.
Assim que a minha sétima vez chegou, endireitei-me e caminhei até ele num ritmo lento, provocando um barulho ensurdecedor a cada passo que dava – culpa dos meus tacões propositadamente sem capas, para chamar a atenção de todos.
E de facto todos olhavam para mim mas os meus olhos só tinham um destino. Ele correspondia. Eu sorri. Ele humedeceu os lábios. Eu dei um jeito no cabelo. Ele coçou o pescoço com a palma da mão. Eu caí outra vez – afinal, os tacões não tinham capas, grande merda! Todos abriram as bocas de espanto e preocupação. Eu praguejei. Um senhor veio em meu auxílio. Eu esbracejei e cravei-lhe uma unha na bochecha. O senhor insultou-me. Eu levantei-me. Ele sorria. Eu exibi os meus dentes brancos salpicados por pingos de sangue que escorreram das gengivas, quando o meu rosto embateu contra o meu punho fechado – não perguntem como raio caí, mas isso aconteceu.
Pousei as cartas no balcão. Ele conferiu. Paguei os envelopes. Ele espreitou o endereço e disse-me que acreditava que dois daqueles códigos postais não existissem – merda! Enchi-me de coragem e respondi que as cartas não interessavam naquele momento, nem as cartas nem o resto.
Ele pareceu meditar por instantes e olhou-me como se eu fosse um frasco de mel. Perguntou-me se tinha o meu número de telefone, para o caso de as cartas serem devolvidas. Eu respondi que, para esse efeito, estava lá escrita a minha morada. 'El jefe' voltou a sorrir e explicou que sabia, mas que me queria ligar primeiro para saber se eu estava em casa de forma a poder entregar-mas pessoalmente.
Eu soltei um guincho quando na verdade desejava apenas mostrar um contentamento relativo.
Dei-lhe o número e dirigi-me à saída abanando as ancas, metro para um lado metro para o outro, e antes de sair lancei-lhe um ar de predadora, como se estivesse a marcá-lo para mim, na certeza que 'el jefe' seria a primeira aventura carnal extra-conjugal.