23/01/2014

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CARDOSO – PARTE IX


No dia seguinte à recriação do “Lobijovem” acordei com a polícia a bater à porta da igreja. Gritei que se queriam falar com o padre Cardoso que batessem na porta da casa dele. Eles disseram que já o tinham feito mas que não o encontraram, pelo que só podia estar ali.
Eu praguejei e abri as portas da casa de Deus. Eram dois, os agentes da autoridade, ambos da GNR. Tinham as botas engraxadas e óculos de sol à aviador. Entraram e perguntaram a razão pela qual se sentia por toda a parte um cheiro tão intenso a álcool. Eu fui sincero ao responder que depois do “Lobijovem” tínhamos dado uma festa e que se não acreditavam que podiam ver a máquina de pressão e os barris de cerveja pousados em cima do altar. Eles disseram que acreditavam e eu respondi que era bom sinal, pois um homem de Deus nunca mente.
Um deles espreitou e perguntou quem era a velha que estava deitada no chão a um par de metros de mim. Encolhi os ombros e expliquei que a dona Amélia ficava doida quando via um órgão sexual masculino de dimensões exageradas e que se enfrascava até à inconsciência sempre que isso acontecia.
Depois estiveram uns minutos a avaliar uns quantos ressacados que ressonavam e se largavam quando o ronco se relevava mais profundo. Estavam todos deitados no chão, sem qualquer ordem nem orientação, como se tivessem caído redondos no chão, que nem os tordos que eu costumava caçar com a minha Magnum 44.
Um dos polícias tirou os óculos e encarou-me. “Parece que a festa do ano decorreu mesmo aqui.” Eu confirmei com a cabeça. “Porque é que não fomos convidados?”
Eu engasguei-me. Fiquei fodido, confesso. Como me podia ter eu esquecido de convidar a malta da polícia? Afinal, também eles eram filhos de Deus; até eles! Pedi-lhes perdão e prometi que me chicotearia mais tarde quando tivesse vagar. Eles disseram que não era preciso, que bastava um fininho para atenuar a tristeza que lhes invadia a alma.
Eles entraram e eu segui-os em direcção ao altar. Os agentes foram espreitando o pessoal deitado. Até que um deles, o mais velho, parou, especado, mirando uma mulher de cabelos ruivos. “Maria?” disse. “Conhece a Maria vai-com-todos?”, inquiri. Ele olhou-me de soslaio e respondeu: “A Maria é a minha esposa, que história é essa de ir-com-todos?” Eu tremi por dentro. Não queria que o senhor agente soubesse que ela ia com todos. Não era minha intenção aborrecê-lo. Depois lembrei-me que eu e ela havíamos tido uma conversa há uns tempos, tendo rido às gargalhas devido à estranha ironia do destino. “Eu disse vai-com-todos?” Ele confirmou com um breve aceno. “Então percebeu mal, eu disse Maria Viatodos; Viatodos, freguesia de Barcelos, não é a terra dela?” O polícia semicerrou os olhos e afirmou que sim, que eu tinha razão. Porém, voltou a insistir, querendo saber o que fazia ela ali. Eu tornei a encolher os ombros e prometi-lhe que quando acordasse a levaria para o confessionário, e que mais tarde lhe contaria tudo, quebrando o voto de silêncio relativamente aos pecados alheios.
Os agentes continuaram até ao altar e eu servi-lhes cerveja em copos de plástico.
Ambos beberam até que o mais novo, o que não era casado com a Maria Viatodos, percebeu que alguma coisa se encontrava fora do normal. Aproximou-se de alguns dos paroquianos deitados e disse: “Que líquido vermelho é este?” Eu respondi calmamente: “Groselha, a maior parte das patroas não gosta de cerveja pura.” Ele argumentou que o líquido estava junto de homens e não de mulheres. Eu contrapus, assumindo que eram homens por fora mas mulheres por dentro. E então ele detectou outro pormenor: “E que buracos são estes nestes corpos banhados a groselha?” Eu olhei e esperei um segundo para me mostrar mais confiante. “Buracos normais, estivemos a jogar aos dardos ontem à noite.” Ele perguntou-me se tínhamos jogado utilizando pessoas como alvo. Eu afirmei que sim, que era muito divertido e que era bastante comum em salas de tortura e assim.
Eles ficaram mais descansados e partiram.
Eu suspirei de alívio, feliz por não terem detectado que os buracos se deviam às balas disparadas pela minha Magnum 44 na noite anterior e por não terem reparado no pêlo do uivador sucumbido que se encontrava espalhado por toda a parte.
Então acordei os paroquianos e enxotei-os, ordenando que levassem os corpos dos defuntos para o rio mais próximo, a 7 quilómetros dali.
Depois sentei-me em cima da máquina de finos que por sua vez estava em cima do altar. Caí. Mas tal como Jesus Cristo, levantei-me.
Deduzi que a polícia acabaria por voltar e que um dos paroquianos daria com a língua nos dentes, pelo menos um dos que se lembraria do que havia sucedido.
Suspirei de tristeza por, afinal, a vida não ser um filme e nem sempre nos safarmos fosse de que forma fosse.
Por isso, assim que limpei a igreja, enfiei-me no meu quarto a ver televisão, aguardando ansiosamente que algum filme me dissesse como haveria de solucionar aquele imbróglio.
Mas isso fica para a próxima.


1 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Mais uma Crónica hilariante deste Padre Cardoso...
kkkkkkkkkkkkkkk...............