CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
CARDOSO
– PARTE IX
No dia seguinte à recriação do
“Lobijovem” acordei com a polícia a bater à porta da igreja.
Gritei que se queriam falar com o padre Cardoso que batessem na porta
da casa dele. Eles disseram que já o tinham feito mas que não o
encontraram, pelo que só podia estar ali.
Eu praguejei e abri as portas da
casa de Deus. Eram dois, os agentes da autoridade, ambos da GNR.
Tinham as botas engraxadas e óculos de sol à aviador. Entraram e
perguntaram a razão pela qual se sentia por toda a parte um cheiro
tão intenso a álcool. Eu fui sincero ao responder que depois do
“Lobijovem” tínhamos dado uma festa e que se não acreditavam
que podiam ver a máquina de pressão e os barris de cerveja pousados
em cima do altar. Eles disseram que acreditavam e eu respondi que era
bom sinal, pois um homem de Deus nunca mente.
Um deles espreitou e perguntou
quem era a velha que estava deitada no chão a um par de metros de
mim. Encolhi os ombros e expliquei que a dona Amélia ficava doida
quando via um órgão sexual masculino de dimensões exageradas e que
se enfrascava até à inconsciência sempre que isso acontecia.
Depois estiveram uns minutos a
avaliar uns quantos ressacados que ressonavam e se largavam quando o
ronco se relevava mais profundo. Estavam todos deitados no chão, sem
qualquer ordem nem orientação, como se tivessem caído redondos no
chão, que nem os tordos que eu costumava caçar com a minha Magnum
44.
Um dos polícias tirou os óculos
e encarou-me. “Parece que a festa do ano decorreu mesmo aqui.” Eu
confirmei com a cabeça. “Porque é que não fomos convidados?”
Eu engasguei-me. Fiquei fodido,
confesso. Como me podia ter eu esquecido de convidar a malta da
polícia? Afinal, também eles eram filhos de Deus; até eles!
Pedi-lhes perdão e prometi que me chicotearia mais tarde quando
tivesse vagar. Eles disseram que não era preciso, que bastava um
fininho para atenuar a tristeza que lhes invadia a alma.
Eles entraram e eu segui-os em
direcção ao altar. Os agentes foram espreitando o pessoal deitado.
Até que um deles, o mais velho, parou, especado, mirando uma mulher
de cabelos ruivos. “Maria?” disse. “Conhece a Maria
vai-com-todos?”, inquiri. Ele olhou-me de soslaio e respondeu: “A
Maria é a minha esposa, que história é essa de ir-com-todos?” Eu
tremi por dentro. Não queria que o senhor agente soubesse que ela ia
com todos. Não era minha intenção aborrecê-lo. Depois lembrei-me
que eu e ela havíamos tido uma conversa há uns tempos, tendo rido
às gargalhas devido à estranha ironia do destino. “Eu disse
vai-com-todos?” Ele confirmou com um breve aceno. “Então
percebeu mal, eu disse Maria Viatodos; Viatodos, freguesia de
Barcelos, não é a terra dela?” O polícia semicerrou os olhos e
afirmou que sim, que eu tinha razão. Porém, voltou a insistir,
querendo saber o que fazia ela ali. Eu tornei a encolher os ombros e
prometi-lhe que quando acordasse a levaria para o confessionário, e
que mais tarde lhe contaria tudo, quebrando o voto de silêncio
relativamente aos pecados alheios.
Os agentes continuaram até ao
altar e eu servi-lhes cerveja em copos de plástico.
Ambos beberam até que o mais
novo, o que não era casado com a Maria Viatodos, percebeu que alguma
coisa se encontrava fora do normal. Aproximou-se de alguns dos
paroquianos deitados e disse: “Que líquido vermelho é este?” Eu
respondi calmamente: “Groselha, a maior parte das patroas não
gosta de cerveja pura.” Ele argumentou que o líquido estava junto
de homens e não de mulheres. Eu contrapus, assumindo que eram homens
por fora mas mulheres por dentro. E então ele detectou outro
pormenor: “E que buracos são estes nestes corpos banhados a
groselha?” Eu olhei e esperei um segundo para me mostrar mais
confiante. “Buracos normais, estivemos a jogar aos dardos ontem à
noite.” Ele perguntou-me se tínhamos jogado utilizando pessoas
como alvo. Eu afirmei que sim, que era muito divertido e que era
bastante comum em salas de tortura e assim.
Eles ficaram mais descansados e
partiram.
Eu suspirei de alívio, feliz por
não terem detectado que os buracos se deviam às balas disparadas
pela minha Magnum 44 na noite anterior e por não terem
reparado no pêlo do uivador sucumbido que se encontrava espalhado
por toda a parte.
Então acordei os paroquianos e
enxotei-os, ordenando que levassem os corpos dos defuntos para o rio
mais próximo, a 7 quilómetros dali.
Depois sentei-me em cima da
máquina de finos que por sua vez estava em cima do altar. Caí. Mas
tal como Jesus Cristo, levantei-me.
Deduzi que a polícia acabaria
por voltar e que um dos paroquianos daria com a língua nos dentes,
pelo menos um dos que se lembraria do que havia sucedido.
Suspirei de tristeza por, afinal,
a vida não ser um filme e nem sempre nos safarmos fosse de que forma
fosse.
Por isso, assim que limpei a
igreja, enfiei-me no meu quarto a ver televisão, aguardando
ansiosamente que algum filme me dissesse como haveria de solucionar
aquele imbróglio.
Mas isso fica para a próxima.
1 comentários:
Mais uma Crónica hilariante deste Padre Cardoso...
kkkkkkkkkkkkkkk...............
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