19/09/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS



CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

JEREMIAS – PARTE I

Olá. Sou o Jeremias. Falta-me um dente canino e tenho lábios grossos. Fora isso sou parecido com o Johnny Bravo. Sabem quem é, não sabem? Aquele que se penteia muitas vezes, que encontra posições supostamente naturais para salientar os músculos e que diz que come as gajas todas quando apenas o faz no interior do seu cérebro de galinha. Bem, existem três diferenças entre mim e o Johnny: sou real, como as gajas que digo que como e não tenho um cérebro de galinha.
Como se recordam, eu salvei a ministra Graça das garras do povo. Não que isso fosse a minha tarefa, mas não gosto de ver injustiças. Onde é que já se viu as pessoas quererem fazer justiça com as próprias mãos? Isto não se faz! E eu sei do que estou a falar porque já fui juiz. Bem, na verdade fui o gajo que limpava a mesa do juiz antes do início da primeira sessão, mas fiz muitas vezes de conta que era juiz.
Adiante. Salvei a Graça e com muito orgulho.
Mas não estou aqui para falar dela. Estou aqui para falar de mim. E o que me caracteriza? Pois. Eu sou o gajo dos mil-ofícios.
E como houve por aí um moço de nome muçulmano que falou da sua vida de trás para a frente, eu vou fazê-lo de forma inversa relativamente à minha carreira profissional.
Pois bem.
Hoje em dia sou polícia de trânsito.
E o que faz um polícia de trânsito? Faz muita coisa ao contrário do que possam imaginar.
Para começar, faço aquilo que costumava fazer nos outros ofícios: avalio gajas. Gajas de todo o tipo de gaja. Claro que sou mais simpático para as gajas que são o meu tipo de gaja do que para aquelas que não o são. E qual o meu tipo de gaja? Bem, a verdade é que me satisfaço com todo o tipo de gajas, excepto as gajas que se fazem passar por gajas mas que na verdade são gajos. Já apanhei uma dessas em Moscovo, numa viagem quando trabalhava noutro ramo e, acreditem, não é uma boa sensação. É como pensar que vamos comer - comer alimentos, não gajas - um bolo fresco e de repente damos uma dentada e verificamos que ele se encontra congelado no meio. Do pior, meus amigos, não experimentem. E eu sei do que estou a falar. Foi assim que parti o meu canino.
Bom, para além disso, mando parar os carros que são suspeitos, para além dos que têm gajas boas, e também gajas que não sejam boas, já agora. Também substituo semáforos avariados de vez em quando, algo que odeio porque me faz sentir um objecto.
Também faria parte das minhas tarefas perseguir carros em excesso de velocidade ou cujos donos estejam em incumprimento com a lei. Só não o faço porque sou sensível do estômago. Assim, sempre que o meu colega - sim, tenho um parceiro de vez em quando e que conduz a viatura quando não ando na rua a fazer de poste tri-colorido - percebe que terá de acelerar para perseguir alguém, pára o carro, deixa-me na berma, vai à sua vida e depois regressa para me apanhar quando o serviço foi feito. E o que faço enquanto ele anda a brincar à “Velocidade Furiosa”? Quatro coisas: fotografo com o telemóvel as primeiras dez gajas que se atravessam no meu caminho, bebo uma cerveja fresca esteja sol ou esteja frio - ou vou ao café ou saco a arca hermética que anda sempre na mala do carro que quando ele demora muito até serve de banco-, faço o sudoku do dia e rezo dez Pais-Nossos - dantes rezava ao acordar, mas com este trabalho levanto-me muito cedo.
E é esta a minha vida de polícia de trânsito. Não passo multas, não detenho ninguém, não faço relatórios e não mantenho a ordem. Não faz parte do meu perfil sociológico esse tipo de coisas.
Na verdade nem sei como vim parar à polícia de trânsito. Quer dizer, até sei. Foi por causa de Beatriz, aquela boazona! Ela era uma gaja-polícia e eu necessitava de estar perto dela. Foi bom o nosso amor enquanto durou. Foram três dias fabulosos.
Ela amava-me profundamente, até por ter mexido uns belos cordelinhos para me arranjar este emprego como agente da autoridade. Terminámos a nossa relação quando descobri que ela tinha dormido com o chefe. Vadia. Um gajo está sempre a aprender com a vida e principalmente com as gajas. Hoje nem sei onde ela anda. Deve ter sido colocada noutra esquadra.
Mas ainda hoje conservo os Ray-Ban que ela me deu, iguaizinhos aos que o Steve McQueen usava num filme em que era o gajo mais duro do planeta.
E porque falo do Steve McQueen? Porque ele era o meu ídolo, uma inspiração, que me levou a procurar o meu lugar no mundo da representação mesmo antes de ser polícia de trânsito.


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