CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JEREMIAS
– PARTE I
Olá.
Sou o Jeremias. Falta-me um dente canino e tenho lábios grossos.
Fora isso sou parecido com o Johnny Bravo. Sabem quem é, não sabem?
Aquele que se penteia muitas vezes, que encontra posições
supostamente naturais para salientar os músculos e que diz que come
as gajas todas quando apenas o faz no interior do seu cérebro de
galinha. Bem, existem três diferenças entre mim e o Johnny: sou
real, como as gajas que digo que como e não tenho um cérebro de
galinha.
Como
se recordam, eu salvei a ministra Graça das garras do povo. Não que
isso fosse a minha tarefa, mas não gosto de ver injustiças. Onde é
que já se viu as pessoas quererem fazer justiça com as próprias
mãos? Isto não se faz! E eu sei do que estou a falar porque já fui
juiz. Bem, na verdade fui o gajo que limpava a mesa do juiz antes do
início da primeira sessão, mas fiz muitas vezes de conta que era
juiz.
Adiante.
Salvei a Graça e com muito orgulho.
Mas
não estou aqui para falar dela. Estou aqui para falar de mim. E o
que me caracteriza? Pois. Eu sou o gajo dos mil-ofícios.
E
como houve por aí um moço de nome muçulmano que falou da sua vida
de trás para a frente, eu vou fazê-lo de forma inversa
relativamente à minha carreira profissional.
Pois
bem.
Hoje
em dia sou polícia de trânsito.
E
o que faz um polícia de trânsito? Faz muita coisa ao contrário do
que possam imaginar.
Para
começar, faço aquilo que costumava fazer nos outros ofícios:
avalio gajas. Gajas de todo o tipo de gaja. Claro que sou mais
simpático para as gajas que são o meu tipo de gaja do que para
aquelas que não o são. E qual o meu tipo de gaja? Bem, a verdade é
que me satisfaço com todo o tipo de gajas, excepto as gajas que se
fazem passar por gajas mas que na verdade são gajos. Já apanhei uma
dessas em Moscovo, numa viagem quando trabalhava noutro ramo e,
acreditem, não é uma boa sensação. É como pensar que vamos comer
- comer alimentos, não gajas - um bolo fresco e de repente damos uma
dentada e verificamos que ele se encontra congelado no meio. Do pior,
meus amigos, não experimentem. E eu sei do que estou a falar. Foi
assim que parti o meu canino.
Bom,
para além disso, mando parar os carros que são suspeitos, para além
dos que têm gajas boas, e também gajas que não sejam boas, já
agora. Também substituo semáforos avariados de vez em quando, algo
que odeio porque me faz sentir um objecto.
Também
faria parte das minhas tarefas perseguir carros em excesso de
velocidade ou cujos donos estejam em incumprimento com a lei. Só não
o faço porque sou sensível do estômago. Assim, sempre que o meu
colega - sim, tenho um parceiro de vez em quando e que conduz a
viatura quando não ando na rua a fazer de poste tri-colorido -
percebe que terá de acelerar para perseguir alguém, pára o carro,
deixa-me na berma, vai à sua vida e depois regressa para me apanhar
quando o serviço foi feito. E o que faço enquanto ele anda a
brincar à “Velocidade Furiosa”? Quatro coisas: fotografo com o
telemóvel as primeiras dez gajas que se atravessam no meu caminho,
bebo uma cerveja fresca esteja sol ou esteja frio - ou vou ao café
ou saco a arca hermética que anda sempre na mala do carro que quando
ele demora muito até serve de banco-, faço o sudoku do dia e
rezo dez Pais-Nossos - dantes rezava ao acordar, mas com este
trabalho levanto-me muito cedo.
E
é esta a minha vida de polícia de trânsito. Não passo multas, não
detenho ninguém, não faço relatórios e não mantenho a ordem. Não
faz parte do meu perfil sociológico esse tipo de coisas.
Na
verdade nem sei como vim parar à polícia de trânsito. Quer dizer,
até sei. Foi por causa de Beatriz, aquela boazona! Ela era uma
gaja-polícia e eu necessitava de estar perto dela. Foi bom o nosso
amor enquanto durou. Foram três dias fabulosos.
Ela
amava-me profundamente, até por ter mexido uns belos cordelinhos
para me arranjar este emprego como agente da autoridade. Terminámos
a nossa relação quando descobri que ela tinha dormido com o chefe.
Vadia. Um gajo está sempre a aprender com a vida e principalmente
com as gajas. Hoje nem sei onde ela anda. Deve ter sido colocada
noutra esquadra.
Mas
ainda hoje conservo os Ray-Ban que ela me deu, iguaizinhos aos que o
Steve McQueen usava num filme em que era o gajo mais duro do planeta.
E
porque falo do Steve McQueen? Porque ele era o meu ídolo, uma
inspiração, que me levou a procurar o meu lugar no mundo da
representação mesmo antes de ser polícia de trânsito.
0 comentários:
Enviar um comentário