12/12/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS





CARDOSO – PARTE IV


Esta noite não dormi nada de jeito.
Acordei às 3h00 e nunca mais voltei a pregar o olho.
Vai daí pus-me a fazer um zapping na televisão por cabo, que já nem é por cabo mas sim por satélite, um verdadeiro roubo. Mas a mim não me roubam que o Ceninho - funcionário da empresa - vai à missa dia sim dia não.
Assisti a partes de documentários sobre a vida selvagem, ou, utilizando outros termos, sobre a vida urbana. Mas também vi programas sobre o fim do mundo, séries com vampiros e uma boa parte de um filme sobre a vida de um padre. A vida de um padre, imaginem! Estava tudo mal!
Penso até que talvez fosse uma película satírica. Senão vejamos. O gajo rezava, praticava o bem, preocupava-se com as pessoas, dizia sempre a verdade e - riam-se - era virgem. Virgem! Que loser como diria o meu quarto filho bastardo. Mas quem é que neste mundo é virgem?! Nem os canos da minha cozinha que foram arranjados no Verão passado o são. Bem, adiante. Há segredos e segredos.
O que na verdade me revoltou nesse filme foi o facto de o padre ser uma espécie de santo, algo que nos dias de hoje é extremamente perigoso. Ou seja, se toda a gente souber que existe um padre com essas características haverá um pensamento global no sentido de se achar que todos os membros do clero são uns medricas e uns pãezinhos sem sal. Receei logo que fossemos vistos como fracos e uns coitadainhos que tiram o pão da boca para dar aos pobres. Yeah, right!, como diria a minha neta mais velha, filha da minha sétima filha bastarda. Como se eu fosse deixar de me alimentar. Como teria forças para pregar a palavra do Senhor?
Eram 6h39 e estava eu a pensar que padres como o do “O Exorcista” ou o do “O Crime do Padre Amaro”, ou mesmo o da aquela série que representa o papa Alexandre VI, são bem mais porreiros. São padres-heróis, com os tomates no sítio, adaptados a uma sociedade viril. Quem sabe, um dia, não verei no cinema um padre a ascender à presidência de um dos países mais poderosos do mundo?
Depois revoltei-me e decidi levantar-me cedo, às 10h01.
Estava determinado a mudar a imagem dos padres.
Nós, padres, não somos uns coitadinhos com deficiência na fala nem temos uma pronúncia do interior. Não somos carecas nem balofos. Não somos impotentes nem usamos roupa remendada. Nós, padres, somos como toda a gente, ou melhor até. Temos dívidas no jogo, problemas de álcool, dificuldades em aceitar os nossos próprios problemas e sofremos de claustrofobia quando entramos no confessionário.
Não! Nós não somos coitadinhos.
Nós, padres, somos fodidos! Somos como aqueles jogadores de râguebi que fazem aquelas danças para intimidar os adversários e se for necessário defendemos a nossa família, por mais bastarda que seja, com unhas e dentes.
Nós, padres, temos problemas e resolvemo-los, seja de que forma for.
Nós, padres, assustamos o susto, cuspimos no cuspo, amedrontamos o medo e fazemos o choro chorar.
Por isso não vesti a batina quando fui dar a missa, ó se a vestia! A batina não mete medo, ela torna-nos macios perante os olhos do povo.
Vesti apenas um par de calças de ganga e dirigi-me ao altar descalço em tronco nu. Eu tinha de mostrar de que fibra era feito, apesar da gordura acumulada nas zonas mais susceptíveis, porque a idade não perdoa.
Olhei os paroquianos e disse:
“Paroquianos. Eu, o padre Cardoso, sou fodido. Sou o gajo mais fodido da região.”
Nesse instante o Zequinha - também conhecido por Zequinha da perna aberta - gritou com uma voz esganiçada “A seguir a mim!”
Apeteceu-me espancá-lo. Mas não o fiz. Talvez um dia ele me fosse útil e eu não queria que guardasse rancor. Ignorei-o depois de lançar um olhar à matador que acabou por não intimidá-lo. Bem pelo contrário.
“Como dizia, eu sou fodido! Não sou como o padre Rosa, que me antecedeu, que pedia esmolas para comprar um agrafador. Eu, padre Cardoso, quando peço é à patrão! Aproveito para avisar que, pelo Natal, vou querer uma máquina de lavar a roupa, topo de gama, daquelas que dão para regular a hora da lavagem para não ter de me levantar a meio da noite e estender o raio da roupa. Também não sou como o padre Bento que por pouco não foi para a prisão por atentado ao pudor. Eu matar-me-ia de forma nobre como os samurais, embora usando a faca do queijo. Eu sei que Deus diz que o suicídio é pecado. Mas Ele diz isso porque não é tão fodido quanto eu, porque se o fosse as coisas não seriam bem assim. Portanto, ai de vocês que ousem pensar que sou um medricas! O primeiro que o fizer deixo-o dez dias ao sol, pregado numa roda. Podia pregar numa cruz, mas isso é para medricas. É mesmo numa roda para que seja empurrado pelos miúdos como eu fazia com as rodas das bicicletas. Será rodificado numa merda de uma roda e estará em constante movimento durante dez dias, o mesmo período que Jesus Cristo demorou a regressar à Terra!”
Calei-me, sentido o sangue a fervilhar. E, lá atrás, trémula da sua mãozinha que agarrava a bengala, a dona Lurdes falou. Tinha quase noventa anos e não via de um olho. Era velha, mas falava alto que se fartava. Perguntou, invadindo aquele silêncio típico da casa de Deus, se Cristo não tinha ressuscitado ao terceiro dia.
Eu engoli em seco e gritei: “Blasfémia! Já para a roda”.


2 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

"Blasfémia"..."Cruzes,canhoto"...mas quem é este Padre Cardoso?! KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK

Norma Gondar disse...

A dona Lurdes, não sabe o momento de estar calada LOLOLOLOOLOL