CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
CARDOSO
– PARTE IV
Esta noite não dormi nada de
jeito.
Acordei às 3h00 e nunca mais
voltei a pregar o olho.
Vai daí pus-me a fazer um
zapping na televisão por cabo, que já nem é por cabo mas
sim por satélite, um verdadeiro roubo. Mas a mim não me roubam que
o Ceninho - funcionário da empresa - vai à missa dia sim dia não.
Assisti a partes de documentários
sobre a vida selvagem, ou, utilizando outros termos, sobre a vida
urbana. Mas também vi programas sobre o fim do mundo, séries com
vampiros e uma boa parte de um filme sobre a vida de um padre. A vida
de um padre, imaginem! Estava tudo mal!
Penso até que talvez fosse uma
película satírica. Senão vejamos. O gajo rezava, praticava o bem,
preocupava-se com as pessoas, dizia sempre a verdade e - riam-se -
era virgem. Virgem! Que loser como diria o meu quarto filho
bastardo. Mas quem é que neste mundo é virgem?! Nem os canos da
minha cozinha que foram arranjados no Verão passado o são. Bem,
adiante. Há segredos e segredos.
O que na verdade me revoltou
nesse filme foi o facto de o padre ser uma espécie de santo, algo
que nos dias de hoje é extremamente perigoso. Ou seja, se toda a
gente souber que existe um padre com essas características haverá
um pensamento global no sentido de se achar que todos os membros do
clero são uns medricas e uns pãezinhos sem sal. Receei logo que
fossemos vistos como fracos e uns coitadainhos que tiram o pão da
boca para dar aos pobres. Yeah, right!, como diria a minha
neta mais velha, filha da minha sétima filha bastarda. Como se eu
fosse deixar de me alimentar. Como teria forças para pregar a
palavra do Senhor?
Eram 6h39 e estava eu a pensar
que padres como o do “O Exorcista” ou o do “O Crime do Padre
Amaro”, ou mesmo o da aquela série que representa o papa Alexandre
VI, são bem mais porreiros. São padres-heróis, com os tomates no
sítio, adaptados a uma sociedade viril. Quem sabe, um dia, não
verei no cinema um padre a ascender à presidência de um dos países
mais poderosos do mundo?
Depois revoltei-me e decidi
levantar-me cedo, às 10h01.
Estava determinado a mudar a
imagem dos padres.
Nós, padres, não somos uns
coitadinhos com deficiência na fala nem temos uma pronúncia do
interior. Não somos carecas nem balofos. Não somos impotentes nem
usamos roupa remendada. Nós, padres, somos como toda a gente, ou
melhor até. Temos dívidas no jogo, problemas de álcool,
dificuldades em aceitar os nossos próprios problemas e sofremos de
claustrofobia quando entramos no confessionário.
Não! Nós não somos
coitadinhos.
Nós, padres, somos fodidos!
Somos como aqueles jogadores de râguebi que fazem aquelas danças
para intimidar os adversários e se for necessário defendemos a
nossa família, por mais bastarda que seja, com unhas e dentes.
Nós, padres, temos problemas e
resolvemo-los, seja de que forma for.
Nós, padres, assustamos o susto,
cuspimos no cuspo, amedrontamos o medo e fazemos o choro chorar.
Por isso não vesti a batina
quando fui dar a missa, ó se a vestia! A batina não mete medo, ela
torna-nos macios perante os olhos do povo.
Vesti apenas um par de calças de
ganga e dirigi-me ao altar descalço em tronco nu. Eu tinha de
mostrar de que fibra era feito, apesar da gordura acumulada nas zonas
mais susceptíveis, porque a idade não perdoa.
Olhei os paroquianos e disse:
“Paroquianos. Eu, o padre
Cardoso, sou fodido. Sou o gajo mais fodido da região.”
Nesse instante o Zequinha -
também conhecido por Zequinha da perna aberta - gritou com uma voz
esganiçada “A seguir a mim!”
Apeteceu-me espancá-lo. Mas não
o fiz. Talvez um dia ele me fosse útil e eu não queria que
guardasse rancor. Ignorei-o depois de lançar um olhar à matador que
acabou por não intimidá-lo. Bem pelo contrário.
“Como dizia, eu sou fodido! Não
sou como o padre Rosa, que me antecedeu, que pedia esmolas para
comprar um agrafador. Eu, padre Cardoso, quando peço é à patrão!
Aproveito para avisar que, pelo Natal, vou querer uma máquina de
lavar a roupa, topo de gama, daquelas que dão para regular a hora da
lavagem para não ter de me levantar a meio da noite e estender o
raio da roupa. Também não sou como o padre Bento que por pouco não
foi para a prisão por atentado ao pudor. Eu matar-me-ia de forma
nobre como os samurais, embora usando a faca do queijo. Eu sei que
Deus diz que o suicídio é pecado. Mas Ele diz isso porque não é
tão fodido quanto eu, porque se o fosse as coisas não seriam bem
assim. Portanto, ai de vocês que ousem pensar que sou um medricas! O
primeiro que o fizer deixo-o dez dias ao sol, pregado numa roda.
Podia pregar numa cruz, mas isso é para medricas. É mesmo numa roda
para que seja empurrado pelos miúdos como eu fazia com as rodas das
bicicletas. Será rodificado numa merda de uma roda e estará em
constante movimento durante dez dias, o mesmo período que Jesus
Cristo demorou a regressar à Terra!”
Calei-me, sentido o sangue a
fervilhar. E, lá atrás, trémula da sua mãozinha que agarrava a
bengala, a dona Lurdes falou. Tinha quase noventa anos e não via de
um olho. Era velha, mas falava alto que se fartava. Perguntou,
invadindo aquele silêncio típico da casa de Deus, se Cristo não
tinha ressuscitado ao terceiro dia.
Eu engoli em seco e gritei:
“Blasfémia! Já para a roda”.
2 comentários:
"Blasfémia"..."Cruzes,canhoto"...mas quem é este Padre Cardoso?! KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK
A dona Lurdes, não sabe o momento de estar calada LOLOLOLOOLOL
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