19/12/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS





CARDOSO – PARTE V


Sou padre. Nem sempre o quis ser, mas a verdade é que chegou uma altura em que escutei o chamamento de Deus. Antes desse chamamento, preparava-me para fazer parte de um painel de provadores de vinhos.
A verdade é que na época não era capaz de distinguir um vinho alentejano de outro da região do Ribatejo. Agora sou, mas é certo que possuo outra bagagem.
E foi no dia em percebi que não ia ficar nesse dito painel que senti o tal chamamento.
Chovia imenso e o meu coração estava destroçado. Pressenti que a minha relação com o vinho, com o mosto, com o teor de álcool, com o sabor frutado e com o cheiro a carvalho envelhecido terminara mesmo antes de começar. Vagueava pelas ruas, sem tentar escapar das espessas gotas de chuva com que os céus me brindavam, quando Deus falou directamente ao meu coração enfraquecido pelo desgosto. “Arranja aí uma moedinha, ó maior”. Olhei para todos os lados e não vi ninguém. Nessa altura o meu coração já palpitava com força. “Aqui em baixo, ó visgolho”. Encarei os meus pés e o passeio mas nada vi. “Não assim tão baixo, ó pastelão”.
E foi então que o vi. Estava sentado em cima de um pedaço de cartão seco. Tinha barba branca e enorme e estava todo esfarrapado. Cheirava a vinho e possuía um chapéuzinho diante dele, voltado ao contrário, contendo um par de moedas pretas. Fixei-o, admirado. O velho não estava encharcado como devia estar, como eu estava. “Estás a olhar, ó aborto?” A sua voz era límpida, como que vinda dos céus, parecendo puro cristal. “Isto aqui não é uma estátua. Queres olhar, pagas, ó aberração”. Peguei na carteira, esvaziei-a e dei-lhe todo o meu dinheiro. Ele sorriu e disse-me: “assim é que é, reservar-te-ei um lugar ao meu lado”.
Ele levantou-se e entrou no centro comercial que se encontrava atrás de si.
Eu fiquei ali durante uns minutos, especado, a tentar perceber o que raio se tinha passado. Sentia o meu peito preenchido por uma força que desconhecia existir até então e de vez em quando beliscava-me para me certificar de que não vivia um sonho.
Passado outros tantos minutos percebi. Aquele homem estava seco no meio daquela chuva toda e, mais, ele prometera guardar-me um lugar a seu lado. Só podia estar a referir-se ao céu. Não havia outra explicação. Jurei nesse instante dedicar a minha vida a Deus, pois aquele homem simplório, disfarçado de pedinte, só podia ser Deus.
Depois o velho - perdão, Deus - voltou com um saco de uma cadeia de supermercados que nada cobra por eles. Trazia garrafas de vinho que tilintavam. Pensei que fosse falar comigo, mas ignorou-me, como se nunca me tivesse visto. Dei graças a Deus - ou a Ele - por não falar mais comigo. Deus era como os lobos, que deixavam as crias seguirem os seus caminhos.
Decidi, com custo, partir. Mas antes disse-lhe “Adeus, Deus”. Ele respondeu “Adeus, adeus? Foda-se, só precisas de o dizer uma vez, não sou mouco”. Eu sorri novamente. Deus era como toda a gente dizia, humilde na sua magnificência e apologista de trocadilhos - como aquela cena em que Jesus caminha em cima da água, só para dizer que os bons surfistas teriam cabelo comprido. Pisquei-lhe o olho e dei-lhe uma palmada no ombro. “Estou a entender-te, Deus”. “Estás a insultar-me, seu boi de cornos serrados?”, respondeu prontamente. “Ah, isto é um teste, entendido, Deus”, disse-lhe eu antes de virar costas e enfrentar a minha nova vida. Jurei a mim mesmo seguir a palavra do Senhor e semeá-la por toda a parte, como os actores pornográficos fazem com as suas sementes.
Todavia, uns metros à frente, senti uma mão pesada puxar-me pelo casaco. Voltei-me cheio de alegria. Era Deus e estava molhado. A chuva passara a cair em cima de si também. Confesso que fiquei confuso, mas deduzi que era mais uma metáfora acerca da vida.
Ele olhou-me e falou: “porque me chamaste Deus, ó amostra de gente?” Expliquei-lhe que ele estava sentado no chão, seco, enquanto tudo em seu redor se encontrava molhado. Ele fez um ar confuso e abanou a cabeça, como que querendo acordar de um pesadelo. “Foda-se, não viste que eu estava abrigado na entrada do centro comercial?” Espreitei por detrás dele e verifiquei que de facto o cartão estava numa área abrigada em que a chuva não caía.
Mas não me dei por vencido.
“Então e o lugar ao lado de Deus?”, disse-lhe, confiante. “Que lugar, seu esquizo?”, inquiriu. “Aquele que me reservavas ao teu lado”. Ele bateu com a mão na testa e argumentou: “Foda-se, estava a dizer que guardava um lugar ao meu lado na tasca do Chino, ó tripa enfarinhada”.
O Deus que afinal não era Deus voltou-se e foi-se embora. Não posso dizer que tenha ficado desapontado pelo que sucedeu. Afinal sempre havia sido um homem de convicções fortes e seria incapaz de voltar atrás com a minha palavra. Deus uma vez, Deus para sempre.
E é aqui que reside a minha enorme vontade de ser fiel ao Senhor. Nessa tarde fui ao cinema e o único filme disponível era religioso. Percebi, então, que a sua mensagem me chegaria através dos filmes a que viria a assistir.



0 comentários: