CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
CARDOSO
– PARTE V
Sou padre. Nem sempre o quis ser,
mas a verdade é que chegou uma altura em que escutei o chamamento de
Deus. Antes desse chamamento, preparava-me para fazer parte de um
painel de provadores de vinhos.
A verdade é que na época não
era capaz de distinguir um vinho alentejano de outro da região do
Ribatejo. Agora sou, mas é certo que possuo outra bagagem.
E foi no dia em percebi que não
ia ficar nesse dito painel que senti o tal chamamento.
Chovia imenso e o meu coração
estava destroçado. Pressenti que a minha relação com o vinho, com
o mosto, com o teor de álcool, com o sabor frutado e com o cheiro a
carvalho envelhecido terminara mesmo antes de começar. Vagueava
pelas ruas, sem tentar escapar das espessas gotas de chuva com que os
céus me brindavam, quando Deus falou directamente ao meu coração
enfraquecido pelo desgosto. “Arranja aí uma moedinha, ó maior”.
Olhei para todos os lados e não vi ninguém. Nessa altura o meu
coração já palpitava com força. “Aqui em baixo, ó visgolho”.
Encarei os meus pés e o passeio mas nada vi. “Não assim tão
baixo, ó pastelão”.
E foi então que o vi. Estava
sentado em cima de um pedaço de cartão seco. Tinha barba branca e
enorme e estava todo esfarrapado. Cheirava a vinho e possuía um
chapéuzinho diante dele, voltado ao contrário, contendo um par de
moedas pretas. Fixei-o, admirado. O velho não estava encharcado como
devia estar, como eu estava. “Estás a olhar, ó aborto?” A sua
voz era límpida, como que vinda dos céus, parecendo puro
cristal. “Isto aqui não é uma estátua. Queres olhar, pagas, ó
aberração”. Peguei na carteira, esvaziei-a e dei-lhe todo o meu
dinheiro. Ele sorriu e disse-me: “assim é que é, reservar-te-ei
um lugar ao meu lado”.
Ele levantou-se e entrou no
centro comercial que se encontrava atrás de si.
Eu fiquei ali durante uns
minutos, especado, a tentar perceber o que raio se tinha passado.
Sentia o meu peito preenchido por uma força que desconhecia existir
até então e de vez em quando beliscava-me para me certificar de que
não vivia um sonho.
Passado outros tantos minutos
percebi. Aquele homem estava seco no meio daquela chuva toda e, mais,
ele prometera guardar-me um lugar a seu lado. Só podia estar a
referir-se ao céu. Não havia outra explicação. Jurei nesse
instante dedicar a minha vida a Deus, pois aquele homem simplório,
disfarçado de pedinte, só podia ser Deus.
Depois o velho - perdão, Deus -
voltou com um saco de uma cadeia de supermercados que nada cobra por
eles. Trazia garrafas de vinho que tilintavam. Pensei que fosse falar
comigo, mas ignorou-me, como se nunca me tivesse visto. Dei graças a
Deus - ou a Ele - por não falar mais comigo. Deus era como os lobos,
que deixavam as crias seguirem os seus caminhos.
Decidi, com custo, partir. Mas
antes disse-lhe “Adeus, Deus”. Ele respondeu “Adeus, adeus?
Foda-se, só precisas de o dizer uma vez, não sou mouco”. Eu sorri
novamente. Deus era como toda a gente dizia, humilde na sua
magnificência e apologista de trocadilhos - como aquela cena em que
Jesus caminha em cima da água, só para dizer que os bons surfistas
teriam cabelo comprido. Pisquei-lhe o olho e dei-lhe uma palmada no
ombro. “Estou a entender-te, Deus”. “Estás a insultar-me, seu
boi de cornos serrados?”, respondeu prontamente. “Ah, isto é um
teste, entendido, Deus”, disse-lhe eu antes de virar costas e
enfrentar a minha nova vida. Jurei a mim mesmo seguir a palavra do
Senhor e semeá-la por toda a parte, como os actores pornográficos
fazem com as suas sementes.
Todavia, uns metros à frente,
senti uma mão pesada puxar-me pelo casaco. Voltei-me cheio de
alegria. Era Deus e estava molhado. A chuva passara a cair em cima de
si também. Confesso que fiquei confuso, mas deduzi que era mais uma
metáfora acerca da vida.
Ele olhou-me e falou: “porque
me chamaste Deus, ó amostra de gente?” Expliquei-lhe que ele
estava sentado no chão, seco, enquanto tudo em seu redor se
encontrava molhado. Ele fez um ar confuso e abanou a cabeça, como
que querendo acordar de um pesadelo. “Foda-se, não viste que eu
estava abrigado na entrada do centro comercial?” Espreitei por
detrás dele e verifiquei que de facto o cartão estava numa área
abrigada em que a chuva não caía.
Mas não me dei por vencido.
“Então e o lugar ao lado de
Deus?”, disse-lhe, confiante. “Que lugar, seu esquizo?”,
inquiriu. “Aquele que me reservavas ao teu lado”. Ele bateu com a
mão na testa e argumentou: “Foda-se, estava a dizer que guardava
um lugar ao meu lado na tasca do Chino, ó tripa enfarinhada”.
O Deus que afinal não era Deus
voltou-se e foi-se embora. Não posso dizer que tenha ficado desapontado
pelo que sucedeu. Afinal sempre havia sido um homem de convicções
fortes e seria incapaz de voltar atrás com a minha palavra. Deus uma
vez, Deus para sempre.
E é aqui que reside a minha
enorme vontade de ser fiel ao Senhor. Nessa tarde fui ao cinema e o
único filme disponível era religioso. Percebi, então, que a sua
mensagem me chegaria através dos filmes a que viria a assistir.
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