06/03/2014

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


MADALENA – PARTE V


Assim que saí do bar fui direitinha de volta à igreja. Não que tivesse de rezar ou que o Senhor estivesse a chamar por mim. Ele nunca chamava. O único senhor que chamava por mim era o senhor meu pai, se bem que esse engolia a própria saliva à força quando se esquecia que quem chamava era eu - ou eu ou o Teddy.
Passei por floreiras lindas de morrer. Tão lindas que as pisei para não dar cabo dos olhos do resto da população.
Pelo caminho também parti o retrovisor do carro do Cerqueira. Soube que tinha sido despedido e que a mulher o deixara. Fi-lo pelo seu próprio bem. O homem precisava de seguir em frente, por isso não devia olhar para trás, fosse em que circunstância fosse.
Também parti o vidro da casa da dona Lurdinhas. Queixava-se que andava sempre com calor, logo brindei-a com ventilação natural.
Roubei a bicicleta do Toninho porque, em cima dela, ele já havia partido um braço e a bacia e eu não queria que ele se voltasse a magoar. Para além disso, deduzi que a dona Lurdinhas precisaria de passar pelo centro de saúde e não o queria entupido. Afinal, apesar de calorenta ela já tinha passado por duas pneumonias no último Inverno.
Depois deixei a bicicleta em casa do Tomané. Ele era surdo-mudo e dificilmente conseguiria explicar que não tinha sido ele a roubar o meio de transporte. Levaria uma coça, mas ao menos isso faria com que reflectisse e aprendesse de vez a escrever, pois com uma caneta e um bloco seria capaz de explicar que não tinha sido ele a roubar a maldita bicicleta.
Em seguida peguei fogo à loja de bicicletas, pois não queria que o Toninho gastasse dinheiro inutilmente. Afinal, mais tarde ou mais cedo a sua haveria de aparecer.
Por fim desloquei-me à agência de seguros e dispus os fios da campainha de forma a que quem tocasse nela apanhasse um valente choque eléctrico. Até porque o agente era meu primo e eu não queria que o gajo das bicicletas desse prejuízo à empresa que o sustentava. Mais a mais, eu estava em dívida para com ele desde que lhe colocara um anúncio com a sua morada dizendo que se recebiam casais para a prática de swing. Fi-lo apenas por diversão e sim, sei o que é swing. Sou madura para a idade e sou da geração da internet.
Eram quase 22H00 quando cheguei à igreja. Entrei e dei de caras com o Jeremias vestindo a túnica que o padre Cardoso costumava usar. Ele sorriu ao ver-me e eu sorri ao ver o castiçal que ele tinha mão. Parecia robusto e pesado.
“Olá, Jeremias.”
“Boa noite, Madalena. A esta hora na casa do Senhor?”
“Sim. Vim a mando do padre Cardoso.”
“Ó, pobre padre Cardoso. Estou a preparar o seu funeral de amanhã.”
“Mas tu és padre, agora?”
“Sou sacristão.”
“Mas ser sacristão é diferente de ser padre.”
“É só um passinho pequenino.”
“Todavia não é a mesma coisa.”
“A Lua também era inacessível até o Homem lá chegar.”
“Há quem diga que isso foi uma farsa.”
“Da mesma forma que acontecerá comigo, nunca ninguém o saberá verdadeiramente. O que te traz aqui, minha filha?”
“Vim matar-te.”
“Aqui? Na casa do Senhor?”
“Nem mais.”
“Mas porquê?”
“Podia invocar que o padre Cardoso me tinha ordenado; que arruinaste a empresa de guarda-chuvas do enteado da irmã da minha avó; que foste responsável pela venda de armas russas que resultaram na morte de milhares de inocentes no médio oriente ao fazeres com que aquela deputada com voz grossa não pudesse votar contra uma lei no parlamento que mais tarde permitiu essa mesma venda; que o último vampiro do planeta se suicidou num dia de sol ao perceber que, como tu, poderia perder um canino. Tenho muitos motivos para roubar a tua vida, Jeremias. Acredita em mim.”
“Mas, Madalena, então por que preferes prosseguir com o plano cruel de me quereres matar?”
“Queres mesmo saber?”
“Quero.”
“O meu Teddy não gosta de ti.”
“O teu Teddy?”
“Sim, o meu ursinho Teddy.”
“E porquê?”
“Não sei. Nunca lhe perguntei. Não tenho por hábito questionar os ursos de peluche quando se sentem abatidos. No entanto desconfio que ele acha que foste tu que o empurraste da cama, quando ele perdeu a sua perna.”
“Mas eu nunca fui à tua casa! Como poderia tê-lo feito?”
“Não interessa. Há quem diga que o Homem nunca foi à Lua. Nunca saberemos.”
E então peguei no seu belo e reluzente castiçal sem que o Jeremias fizesse o que quer que fosse para me impedir.


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