13/03/2014

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


MADALENA – PARTE VI


Quando saí da igreja fui directamente para a minha casa e para bem junto do meu Teddy. Antes de adormecer, porém, ainda joguei uns níveis de Emily Grace. Já vos falei do Emily Grace? Trata-se de um jogo onde se matam pessoas e através do qual liberto a minha mente e faço aquilo que não posso fazer na realidade.
Sim, matei-os a todos na minha cabeça mas não na vida real.
Pensam que sou uma criança cruel?
Pensam que tenho pensamentos perversos?
Pensam que não possuo um coração capaz de amar e de sofrer como qualquer outra criança que brincava com as rodas das bicicletas ou com uma máquina de jogos arcaicos como o Tetris?
Ainda por cima como pensam que os encontraria nos tascos, nos cafés ou nos bares nocturnos assim sem mais nem menos? Eu não fazia ideia acerca do tipo de vida que cada um deles levava. Julgam que seria assim tão fácil? De caminho achavam que eu os mataria com o olhar ou com uma boneca de voodoo?
Acordem e não brinquem comigo!
Eu seria incapaz de cometer qualquer acto selvagem e violento.
Olhem bem para mim!
Vejam como sou riquinha e pisco os olhitos para que me achem uma queridinha. Eu sou a Madalena! A Madaleninha!
Tudo o que leram sobre mim não passou de um exercício de espírito, uma brincadeirinha. Até porque tenho andado com algum stress ultimamente. A professora tem exigido muito de mim e a minha mãe anda a reduzir-me o tempo de jogo na consola. Ando mesmo sob muita pressão.
Felizmente tenho o meu Teddy para me apoiar nestes momentos difíceis em que vacilo.
Acabei por adormecer enquanto o diabo esfregava o olho. O dele e o meu.
Acordei feliz no dia seguinte. Vesti-me a correr e apressei-me a sair de casa. Cheguei mesmo a tempo do início do funeral. Todos choravam a morte do padre Cardoso, incluindo aqueles que eu visitara na minha mente. Todos eles. O Jaime, bebendo uma cerveja e fumando um cigarro na primeira fila. A Rosalina em topless e apoiada no seu varão portátil. O Moustafa e a Maria e o Bruno com os seus cocktail molotov prestes a incendiar tudo e todos. A Graça e a sua bandeira do Brasil atada à cintura como se estivesse no campeonato do mundo de futebol. O Jeremias a focar todas as gajas para averiguar quais não eram gajas, ou melhor, quais as gajas que eram mesmo gajas.
E eu ansiava que todos se fossem embora, para bem longe dali. Eu e o meu Teddy precisávamos de estar a sós com o padre Cardoso. Afinal, eu não tinha encontrado a lista com as moradas de cada um deles em lado algum. De certeza que alguém a colocara no bolso da indumentária de enterro. Só podia estar ali. Os portugueses sempre foram muito apegados às suas coisinhas, mesmo diante da morte.
Quando houve fogo de artifício todos saíram para o átrio da igreja. E nesse instante senti que a minha oportunidade havia chegado.
Rebolei pelo chão frio da casa do Senhor e alcancei o caixão aberto. O padre Cardoso estava maquilhado. Onde já se viu? Um homem maquilhado! E ainda por cima morto! Por onde quereria ele esbanjar a sua beleza? Pelo menos não cheirava mal.
Vasculhei em todos os bolsos sem conseguir encontrar a lista.
Fiquei sem ter a certeza se havia guardado o maldito papel, se ficara caído no confessionário ou se alguém tinha pegado nele.
Praguejei e então encarei-o.
A quem?
Àquele que se dizia o meu melhor amigo.
Ele sorria descaradamente e eu fui invadida por um sentimento de raiva.
“Teddy! Foste tu, não foste? Onde está o maldito bilhete?”




FIM


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