17/06/2010

Arte Poética - José Luís Peixoto

Ao ler o poema que o Manuel Cardoso colocou aqui no Destante de Nuno Judice "Para Escrever o Poema" lembrei-me de "Arte Poética" de José Luís Peixoto, um dos meus preferidos.
"o poema não tem mais que o som do seu sentido, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, o poema é esculpido de sentidos e essa é a sua forma, poema não se lê poema, lê-se pão ou flor, lê-se erva fresca e os teus lábios, lê-se sorriso estendido em mil árvores ou céu de punhais, ameaça, lê-se medo e procura de cegos, lê-se mão de criança ou tu, mãe, que dormes e me fizeste nascer de ti para ser palavras que não se escrevem, Lê-se país e mar e céu esquecido e memória, lê-se silêncio, sim tantas vezes, poema lê-se silêncio, lugar que não se diz e que significa, silêncio do teu olhar doce de menina, silêncio ao domingo entre as conversas, silêncio depois de um beijo ou de uma flor desmedida, silêncio de ti, pai, que morreste em tudo para só existires nesse poema calado, quem o pode negar?que escreves sempre e sempre, em segredo, dentro de mim e dentro de todos os que te sofrem. o poema não é esta caneta de tinta preta, não é esta voz, a letra p não é a primeira letra da palavra poema o poema é quando eu podia dormir à tarde nas férias do verão e o sol entrava pela janela, o poema é onde eu fui feliz e onde eu morri tanto, o poema é quando eu não conhecia a palavra poema, quando eu não conhecia a letra p e comia torradas feitas no lume da cozinha do quintal, o poema é aqui, quando levanto o olhar do papel e deixo as minhas mãos tocarem-te, quando sei, sem rimas e sem metáforas, que te amo, o poema será quando as crianças e os pássaros se rebelarem e, até lá, irá sendo sempre tudo. o poema sabe, o poema conhece-se e, a si próprio, nunca se chama poema, a si próprio, nunca se escreve com p, o poema dentro de si é perfume e é fumo, é um menino que corre num pomar para abraçar o seu pai, é a exaustão e a liberdade sentida, é tudo o que quero aprender se o que quero aprender é tudo, é o teu olhar e o que imagino dele, é solidão e arrependimento, não são bibliotecas a arder de versos contados porque isso são bibliotecas a arder de versos contados e não é o poema, não é a raiz de uma palavra que julgamos conhecer porque só podemos conhecer o que possuímos e não possuímos nada, não é um torrão de terra a cantar hinos e a estender muralhas entre os versos e o mundo, o poema não é a palavra poema porque a palavra poema é um palavra, o poema é a carne salgada por dentro, é um olhar perdido na noite sobre os telhados na hora em que todos dormem, é a última lembrança de um afogado, é um pesadelo, uma angústia, esperança. o poema não tem estrofes, tem corpo, o poema não tem versos, tem sangue, o poema não se escreve com letras, escreve-se com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema, a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos, o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me olhas, o poema é o teu rosto, eu, eu não sei escrever apalavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido. " . in a criança em ruínas, José Luís Peixoto

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