11/04/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


ROSALINA – PARTE VIII


Não desgosto de baptizados e adoro casamentos. Mas sou doida por funerais.
Quanto a funerais de pessoas próximas, confesso que não me agrada. Não sou um bicho, OK? Sou até sensível com determinadas questões. Mas não me peçam para exemplificar porque estive a pensar em qual das camisolas pretas hei-de levar para o funeral da Gertrudes e estou esgotada.
Ora, dizia eu que a morte de gente muito chegada é uma coisa. Agora, conhecidos, vizinhos, colegas, primos, amigos de amigos, figuras públicas e por aí fora, isso sim! Já estamos a falar de uma rambóia das boas.
Adoro! Adoro! Adoro! Adoro!
Em primeiro lugar, devo explicar quem era a Gertrudes. Tinha 52 anos, mais uma década que eu – OK! Meia década! Chatos! -, trabalhava nos correios, era viúva mas andava a comer o chefe de serviço – que por sua vez é casado com a secretária daquela minha amiga do clube bimby, a presidente da Câmara -, cheirava a suor nos dias de sol e a mofo nos dias chuvosos e era uma antipática de topo. Aliás, se a antipatia fosse profissão ela seria uma CEO – não sei o que significa, mas dá estilo dizê-lo; talvez fique melhor do que doutora; pensarei nisso mais tarde – com direito a um artigo na Forbes.
E então, num dia radioso, enquanto carimbava um aviso de recepção de um trabalhador de construção civil africano, a Gertrudes meteu a mão no peito e contorceu o rosto. Não, não sentiu aquela dor aguda típica de um ataque cardíaco. Eu estava lá, eu vi. Ela devia estar apenas com comichão no tecido mamário. Contudo, quando voltou a assumir uma postura digna de quem atende ao público, lá foi buscar a encomenda do moço musculado e rude e selvagem e animalesco pelas traseiras das instalações.
E pronto. Foi aí, já longe da minha vista, que se ouviu um estrondo. Os outros funcionários foram a correr para o armazém e eu até aproveitei para meter uma caneta na mala, já que vigia nem vê-la! Não era uma caneta estilo BIC, mas antes uma personalizada que me faltava na colecção.
Depois veio o alarido do costume. Gritos, suspiros, lamentos, uma mancha de sangue na camisa do chefe de serviço, ambulância, médico, bombeiros, maca, mais lamentos, cochichos, obituário, o espalhar da notícia, mais lamentos e, por fim, o funeral.
Chegada a ansiada celebração, eu apareço com umas olheiras medonhas. Não porque tivesse andado a choramingar pelos cantos, mas sim pelo facto de o entusiasmo me ter roubado algumas horas de sono.
Fiz uma cara tristonha e sentei-me no banco da entrada da igreja, para controlar tudo. Peguei no meu bloquinho cor-de-rosa que uso nos meus funerais – já vou no volume III – e comecei a anotar com a língua de fora, no canto da boca:
1) Rute (sobrinha) – Minha rica tia, tão boa em vida e partiu tão cedo. (choro)
Nota – Ouvia-a, certo dia, a referir-se à mulher como lambisgóia, megera e porca com o cio.
2) Vanessa (vizinha) – Sempre foi digna e amiga do seu amigo. Que Deus a receba em paz, pobre coitada. (suspiro)
Nota – Pois, mas no passado queixou-se, já não sei a quem, que nem os bons dias dava, para além de não pagar o condomínio atempadamente.
3) Horácio (conhecido) – Era bem boa! Pena que não a tenha conhecido melhor. (suspiro)
Nota – Homens...! Não o conheço. Será casado?
4) Rosa (tia) - Mundo injusto, este! Deus devia ter-me levado a mim em vez dela! Leva sempre os novos e não quem merece partir! (choro e soluços)
Nota – Ainda há dias disse para quem quis ouvir que a defunta só a ia visitar para lhe chupar dinheiro.
5) Bruno (amigo da família) – A que horas joga o FC Porto? (indiferença)
Nota – Espero que perca.
6) Rogério (amigo do chefe de serviços dos correios) – Quem é que vais comer agora? (sorriso)
Nota – Espero que outra!
7) Hélio (chefe de serviços dos correios) – Não sei, mas há uma advogada que também marchava.
Nota – Fiz de conta que não ouvi, mas não deixo de anotar.
A pequena missa terminou, guardei o bloquinho e fomos todos a pé atrás do carro fúnebre. Tentámos chorar e alguns de nós fomos bem-sucedidos.
Quando pousaram o caixão no buraco com alguma profundidade, houve quem se quisesse atirar com ele. Por acaso não reconheci a personagem mas também não estava muito atenta. A verdade é que aquele terreno parecia bastante próspero, tinha umas laranjeiras que davam uns frutos bem grandes, redondos e viçosos.




3 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Adorei este episódio!
Só o Vasco com o seu humor peculiar se lembraria de pôr a RôRô num funeral...
Espectacular!
O Vasco continua a surpreender-nos com a sua fértil imaginação e facilidade de descrição de situações incríveis.

Cristina Torrão disse...

Bem, o que eu vou dizer pode parecer estranho, mas o certo é que a Rosalina até sabe fazer coisas úteis e interessantes. Haverá melhor maneira de aprender a conhecer a natureza humana, do que ler esses bloquinhos cor-de-rosa que ela vai preenchendo? ;)

Vasco disse...

:) Nem mais.