CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
ROSALINA
– PARTE VIII
Não
desgosto de baptizados e adoro casamentos.
Mas sou doida por funerais.
Quanto a funerais de pessoas
próximas, confesso que não me agrada. Não sou um bicho, OK? Sou
até sensível com determinadas questões. Mas não me peçam para
exemplificar porque estive a pensar em qual das camisolas pretas
hei-de levar para o funeral da Gertrudes e estou esgotada.
Ora, dizia eu que a morte de
gente muito chegada é uma coisa. Agora, conhecidos, vizinhos,
colegas, primos, amigos de amigos, figuras públicas e por aí fora,
isso sim! Já estamos a falar de uma rambóia das boas.
Adoro! Adoro! Adoro! Adoro!
Em primeiro lugar, devo explicar
quem era a Gertrudes. Tinha 52 anos, mais uma década que eu – OK!
Meia década! Chatos! -, trabalhava nos correios, era viúva mas
andava a comer o chefe de serviço – que por sua vez é casado com
a secretária daquela minha amiga do clube bimby, a presidente da
Câmara -, cheirava a suor nos dias de sol e a mofo nos dias chuvosos
e era uma antipática de topo. Aliás, se a antipatia fosse profissão
ela seria uma CEO – não sei o que significa, mas dá estilo
dizê-lo; talvez fique melhor do que doutora; pensarei nisso mais
tarde – com direito a um artigo na Forbes.
E então, num dia radioso,
enquanto carimbava um aviso de recepção de um trabalhador de
construção civil africano, a Gertrudes meteu a mão no peito e
contorceu o rosto. Não, não sentiu aquela dor aguda típica de um
ataque cardíaco. Eu estava lá, eu vi. Ela devia estar apenas com
comichão no tecido mamário. Contudo, quando voltou a assumir uma
postura digna de quem atende ao público, lá foi buscar a encomenda
do moço musculado e rude e selvagem e animalesco pelas traseiras das
instalações.
E pronto. Foi aí, já longe da
minha vista, que se ouviu um estrondo. Os outros funcionários foram
a correr para o armazém e eu até aproveitei para meter uma caneta
na mala, já que vigia nem vê-la! Não era uma caneta estilo BIC,
mas antes uma personalizada que me faltava na colecção.
Depois veio o alarido do costume.
Gritos, suspiros, lamentos, uma mancha de sangue na camisa do chefe
de serviço, ambulância, médico, bombeiros, maca, mais lamentos,
cochichos, obituário, o espalhar da notícia, mais lamentos e, por
fim, o funeral.
Chegada a ansiada celebração,
eu apareço com umas olheiras medonhas. Não porque tivesse andado a
choramingar pelos cantos, mas sim pelo facto de o entusiasmo me ter
roubado algumas horas de sono.
Fiz uma cara tristonha e
sentei-me no banco da entrada da igreja, para controlar tudo. Peguei
no meu bloquinho cor-de-rosa que uso nos meus funerais – já vou no
volume III – e comecei a anotar com a língua de fora, no canto da
boca:
1)
Rute (sobrinha) –
Minha rica tia, tão boa em vida e partiu tão cedo. (choro)
Nota
– Ouvia-a, certo dia, a referir-se à mulher como lambisgóia,
megera e porca com o cio.
2) Vanessa (vizinha) – Sempre foi digna e amiga do seu amigo. Que
Deus a receba em paz, pobre coitada. (suspiro)
Nota
– Pois, mas no passado queixou-se, já não sei a quem, que nem os
bons dias dava, para além de não pagar o condomínio
atempadamente.
3)
Horácio (conhecido) – Era bem boa! Pena que não a tenha conhecido
melhor. (suspiro)
Nota
– Homens...! Não o conheço. Será casado?
4)
Rosa (tia) - Mundo injusto, este! Deus devia ter-me levado a mim em
vez dela! Leva sempre os novos e não quem merece partir! (choro e
soluços)
Nota – Ainda há dias disse
para quem quis ouvir que a defunta só a ia visitar para lhe chupar
dinheiro.
5)
Bruno (amigo da família) – A que horas joga o FC Porto?
(indiferença)
Nota
– Espero que perca.
6)
Rogério (amigo do chefe de serviços dos correios) – Quem é que
vais comer agora? (sorriso)
Nota
– Espero que outra!
7)
Hélio (chefe de serviços dos correios) – Não sei, mas há uma
advogada que também marchava.
Nota
– Fiz de conta que não ouvi, mas não deixo de anotar.
A pequena missa terminou, guardei
o bloquinho e fomos todos a pé atrás do carro fúnebre. Tentámos
chorar e alguns de nós fomos bem-sucedidos.
Quando pousaram o caixão no
buraco com alguma profundidade, houve quem se quisesse atirar com
ele. Por acaso não reconheci a personagem mas também não estava
muito atenta. A verdade é que aquele terreno parecia bastante
próspero, tinha umas laranjeiras que davam uns frutos bem grandes,
redondos e viçosos.
3 comentários:
Adorei este episódio!
Só o Vasco com o seu humor peculiar se lembraria de pôr a RôRô num funeral...
Espectacular!
O Vasco continua a surpreender-nos com a sua fértil imaginação e facilidade de descrição de situações incríveis.
Bem, o que eu vou dizer pode parecer estranho, mas o certo é que a Rosalina até sabe fazer coisas úteis e interessantes. Haverá melhor maneira de aprender a conhecer a natureza humana, do que ler esses bloquinhos cor-de-rosa que ela vai preenchendo? ;)
:) Nem mais.
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