28/11/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CARDOSO – PARTE II


Hoje acordei com uma valente dor de cabeça. Tenho sentido algumas dores neste último ano. Também já sou sexagenário. E isto nem sempre anda da forma como queremos.
Era bom que houvesse uma espécie de um elixir da juventude, como naquele filme do Indiana Jones.
Assim que pensei nisso a dor passou por completo, mas quando me veio à memória a missa que dei no dia anterior e o choro fingido da velha Graciete, a enxaqueca regressou. Indiana Jones, sem dor. Graciete com dor. Indy, sem dor. Graciete, com dor.
Levantei-me da cama e percebi o que tinha de fazer. Lavei-me mas não aparei a barba. Vesti um casaco de couro castanho mas não a batina. Tomei tranquilamente o pequeno-almoço e fui para a igreja. Bastaram alguns passos para lá chegar, os mesmos passos de sempre excepto quando me apetece soltar o animal que há em mim e procriar em território inimigo.
Senti que as pessoas com quem me cruzei olhavam para mim, embora já me dessem um desconto.
Abri as portas da igreja com pujança e liguei as velas eléctricas - tinham-me proibido de acender velas convencionais depois do incêndio de há uma data de anos. Benzi-me de forma aldrabada 'em nome do Indy, do seu pai e da fonte da juventude, Ámen' e voltei a sair.
Dirigi-me à loja de roupa na rua ao lado e pedi ao Arménio um chapéu de couro castanho. Ele disse que não tinha. Ordenei que rezasse dez vezes a Avé-Maria. Ele ajoelhou-se e iniciou a tarefa de olhos fechados e queixo colado no peito. Enquanto isso, aproveitei para ir às traseiras que acabava por ser um armazém de reduzidas dimensões. Vasculhei e lá encontrei um chapéu igualzinho ao que queria. O Arménio era assim. Metia, por obra do Espírito Santo, na cabeça que eu não pagava as minhas compras e apenas dizia que possuía a meia dúzia de peças expostas na montra. Obviamente que eu não pagava, Deus fá-lo-ia por mim. Enfiei o chapéu na cabeça e, antes de sair, ainda o Arménio ia na sexta reza, perguntei-lhe se ele sabia onde se vendiam chicotes. Ele abanou negativamente a cabeça enquanto sussurrava e eu saí.
Depois fui à loja de produtos de pesca. Questionei o José se vendia chicotes. Ele explicou que só tinha fio de pesca. Mandei-o rezar mas antes que o fizesse disse-me que havia um circo na cidade. Rejubilei até porque a dor de cabeça não tinha voltado.
Quando cheguei à tenda do circo, um domador chicoteava o piso feito de terra, afrontando um leão que dormia. Parecia estar a treinar para o espectáculo dessa noite. Cumprimentei-o e ele sorriu, dizendo que eu parecia o Indiana Jones. Pisquei-lhe o olho e contrapus que só me faltava o chicote. O domador comentou que até era capaz de me dar o dele, mas que dessa forma possivelmente o leão o devorasse quando abrisse os olhos, que o animal tinha um péssimo acordar. Eu encolhi os ombros e expliquei que sendo essa a vontade de Deus não havia nada a fazer. Ele era um devoto e, depois de perceber que eu pregava a palavra do Senhor, atirou o chicote para os meus pés.
De casaco de couro, barba por fazer, chicote na mão e chapéu na cabeça, apressei-me a ir para a igreja, pois a missa das 11h estava quase a começar - o sacristão tinha por hábito dar início à sessão quando eu me atrasava.
Mas mesmo assim cheguei a tempo de dizer à moça do órgão que tocasse a música 'tantantantaaan-tan-tantaaan...tantantantaaan-tan-tan-tan-tan-taaan'. Ela perguntou-me que raio estava eu a balbuciar. Esbofeteei-a e disse àquela puteca, que recusava sexo ocasional com o pessoal, que o Senhor não permitia que se usasse a palavra 'raio'. Ordenei-lhe que tocasse e seguisse o seu coração. Assim, em vez de um Aleluia qualquer do século XIX, ela tocou a música do Indiana Jones. Vocês sabem qual é, certo?
O povo da minha paróquia olhava para todo o lado sem me ver. Foi lançado fumo em direcção ao altar, não através de incenso mas sim de uma máquina produtora de fumo branco que eu tinha fanado no Vaticano quando dei uma rave lá na igreja. E então, quando o suspense estava no auge, eu saltei para cima do altar de pedra, composto por um paninho de linho branco oferecido pelo arcebispo de Braga. Não tinha a batina branca, claro, caso contrário ninguém perceberia quem eu era.
Um grande 'uau' fez-se ouvir e eu deixei-me estar por uns segundos, para dar mais ênfase à coisa, de peito feito e sorriso ligeiramente mais acentuado de um lado.
A música terminou e nem um murmúrio escutei. Todos aguardavam que falasse.
E então falei, feliz por a dor de cabeça ter partido de vez.
“Gente fiel da minha paróquia. Levantem-se e digam: em nome do Indy, do seu pai e da fonte da juventude, Ámen. Podem sentar-se senão chicoteio a torto e a direito. Vamos dar início à missa de hoje. Todos nós sabemos que o Senhor vem à Terra sob as mais variadas formas. Hoje vem enquanto arqueólogo. Como sabem, o Harrison Ford é visto como um Messias por muita gente, pelo menos por mim é. E no último filme da saga Sean Connery foi seu pai. Portanto oremos a eles, Harrison - Jesus Cristo - e Sean - Deus. E se sentirem um calorzinho nas costas, consequência da fúria do meu chicote, rezem mais alto, pois é sinal de que não se estão a fazer escutar aos ouvidos do nosso Senhor. Comecemos então.”

1 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Impagável...Mais um personagem soberbo saído da criatividade espantosa deste jovem escritor.