CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
CARDOSO
– PARTE II
Hoje acordei com uma valente dor
de cabeça. Tenho sentido algumas dores neste último ano. Também já
sou sexagenário. E isto nem sempre anda da forma como queremos.
Era bom que houvesse uma espécie
de um elixir da juventude, como naquele filme do Indiana Jones.
Assim que pensei nisso a dor
passou por completo, mas quando me veio à memória a missa que dei
no dia anterior e o choro fingido da velha Graciete, a enxaqueca
regressou. Indiana Jones, sem dor. Graciete com dor. Indy, sem dor.
Graciete, com dor.
Levantei-me da cama e percebi o
que tinha de fazer. Lavei-me mas não aparei a barba. Vesti um casaco
de couro castanho mas não a batina. Tomei tranquilamente o
pequeno-almoço e fui para a igreja. Bastaram alguns passos para lá
chegar, os mesmos passos de sempre excepto quando me apetece soltar o
animal que há em mim e procriar em território inimigo.
Senti que as pessoas com quem me
cruzei olhavam para mim, embora já me dessem um desconto.
Abri as portas da igreja com
pujança e liguei as velas eléctricas - tinham-me proibido de
acender velas convencionais depois do incêndio de há uma data de
anos. Benzi-me de forma aldrabada 'em nome do Indy, do seu pai e da
fonte da juventude, Ámen' e voltei a sair.
Dirigi-me à loja de roupa na rua
ao lado e pedi ao Arménio um chapéu de couro castanho. Ele disse
que não tinha. Ordenei que rezasse dez vezes a Avé-Maria. Ele
ajoelhou-se e iniciou a tarefa de olhos fechados e queixo colado no
peito. Enquanto isso, aproveitei para ir às traseiras que acabava
por ser um armazém de reduzidas dimensões. Vasculhei e lá
encontrei um chapéu igualzinho ao que queria. O Arménio era assim.
Metia, por obra do Espírito Santo, na cabeça que eu não pagava as
minhas compras e apenas dizia que possuía a meia dúzia de peças
expostas na montra. Obviamente que eu não pagava, Deus fá-lo-ia por
mim. Enfiei o chapéu na cabeça e, antes de sair, ainda o Arménio
ia na sexta reza, perguntei-lhe se ele sabia onde se vendiam
chicotes. Ele abanou negativamente a cabeça enquanto sussurrava e eu
saí.
Depois fui à loja de produtos de
pesca. Questionei o José se vendia chicotes. Ele explicou que só
tinha fio de pesca. Mandei-o rezar mas antes que o fizesse disse-me
que havia um circo na cidade. Rejubilei até porque a dor de cabeça
não tinha voltado.
Quando cheguei à tenda do circo,
um domador chicoteava o piso feito de terra, afrontando um leão que
dormia. Parecia estar a treinar para o espectáculo dessa noite.
Cumprimentei-o e ele sorriu, dizendo que eu parecia o Indiana Jones.
Pisquei-lhe o olho e contrapus que só me faltava o chicote. O
domador comentou que até era capaz de me dar o dele, mas que dessa
forma possivelmente o leão o devorasse quando abrisse os olhos, que
o animal tinha um péssimo acordar. Eu encolhi os ombros e expliquei
que sendo essa a vontade de Deus não havia nada a fazer. Ele era um
devoto e, depois de perceber que eu pregava a palavra do Senhor,
atirou o chicote para os meus pés.
De casaco de couro, barba por
fazer, chicote na mão e chapéu na cabeça, apressei-me a ir para a
igreja, pois a missa das 11h estava quase a começar - o sacristão
tinha por hábito dar início à sessão quando eu me atrasava.
Mas mesmo assim cheguei a tempo
de dizer à moça do órgão que tocasse a música
'tantantantaaan-tan-tantaaan...tantantantaaan-tan-tan-tan-tan-taaan'.
Ela perguntou-me que raio estava eu a balbuciar. Esbofeteei-a e disse
àquela puteca, que recusava sexo
ocasional com o pessoal, que o Senhor não permitia que se
usasse a palavra 'raio'. Ordenei-lhe que tocasse e seguisse o seu
coração. Assim, em vez de um Aleluia qualquer do século XIX, ela
tocou a música do Indiana Jones. Vocês sabem qual é, certo?
O povo da minha paróquia olhava
para todo o lado sem me ver. Foi lançado fumo em direcção ao
altar, não através de incenso mas sim de uma máquina produtora de
fumo branco que eu tinha fanado no Vaticano quando dei uma rave
lá na igreja. E então, quando o suspense estava no auge, eu saltei
para cima do altar de pedra, composto por um paninho de linho branco
oferecido pelo arcebispo de Braga. Não tinha a batina branca, claro,
caso contrário ninguém perceberia quem eu era.
Um grande 'uau' fez-se ouvir e eu
deixei-me estar por uns segundos, para dar mais ênfase à coisa, de
peito feito e sorriso ligeiramente mais acentuado de um lado.
A música terminou e nem um
murmúrio escutei. Todos aguardavam que falasse.
E então falei, feliz por a dor
de cabeça ter partido de vez.
“Gente fiel da minha paróquia.
Levantem-se e digam: em nome do Indy, do seu pai e da fonte da
juventude, Ámen. Podem sentar-se senão chicoteio a torto e a
direito. Vamos dar início à missa de hoje. Todos nós sabemos que o
Senhor vem à Terra sob as mais variadas formas. Hoje vem enquanto
arqueólogo. Como sabem, o Harrison Ford é visto como um Messias por
muita gente, pelo menos por mim é. E no último filme da saga Sean
Connery foi seu pai. Portanto oremos a eles, Harrison - Jesus Cristo
- e Sean - Deus. E se sentirem um calorzinho nas costas, consequência
da fúria do meu chicote, rezem mais alto, pois é sinal de que não
se estão a fazer escutar aos ouvidos do nosso Senhor. Comecemos
então.”
1 comentários:
Impagável...Mais um personagem soberbo saído da criatividade espantosa deste jovem escritor.
Enviar um comentário