CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
CARDOSO
– PARTE III
Já viram um filme sobre um
editor que decide lançar um autor em Nova Iorque, prometendo-lhe
alcançar o topo da tabela do New York Times em escassos meses? Nunca
viram? Nem eu. Mas decerto deve haver algum que conte uma história
dessas, não acham? Daqueles com um orçamento inferior ao que eu
ganho num ano e protagonizado por actores em fase descendente na
carreira e actores novos que julgam possuir um talento que lhes
permite fazer algo mais do que um simples videoclip musical
sem diálogos de um cantor ainda menos famoso do que o próprio
actor?
Tenho a certeza que deve haver um
filme desses por aí. Se houver digam-me. Liguem para a linha de
apoio dos padres aflitos e peçam para falar com a Doroteia que ela
dar-me-á o recado pessoalmente. Mas telefonem apenas entre as 15H e
as 17H, às terças e sextas, que é o único tempo que ela dispõe
para fazer trabalho de caridade.
Ora bem. Nunca vi esse filme, mas
sonhei com ele.
E, adivinhem, quem desempenhava o
papel de escritor nesse meu sonho-filme? Não, não era eu. O
escritor era o Bocas. Sabem quem é? Aquele d' As Aventuras do Bocas,
o boi marado que não pára quieto na sua quinta. Na verdade o Bocas
era um excelente autor. Falava sobre campos e acerca do contraste
entre a cidade e o meio rural, um tema muito invulgar e cada vez mais
raro por aí...
Bom, sendo o Bocas o escritor,
quem acham que era o editor? Não, o editor não era o Tartaruga
Genial do Dragon Ball. O editor era eu, pois claro.
E, no meu sonho-filme, eu não
aparecia vestido de negro, à padre, nem de branco, à padre em
horário de missa. Eu vestia-me à hippie e falava de um modo
muito populista e teen para a minha idade.
Então tinha conhecido o Bocas
porque ele andava pelas tertúlias assumindo que tinha um manuscrito
genial. Pelo menos ia às tertúlias que eram realizadas em espaços
abertos porque ele não conseguia passar pelas ombreiras das portas -
o Bocas é bovino para pesar mais de meia tonelada.
Mal o vi acreditei logo nele.
Tinha qualquer coisa, ou talvez me tivesse captado a atenção por o
ter reconhecido da televisão. Mas logo no dia em que o conheci
disse-lhe que o texto que me dera para ler era demasiado bom para ser
dactilografado por um amador. Ele, orgulhoso, jurara pelos seus
cornos que tinha sido ele mesmo a fazê-lo. Pedi-lhe que me provasse
o que dizia. Fomos para a minha casa, sentei-o diante da minha
secretária apetrechada com a máquina de escrever e disse-lhe
'senta-te e escreve, meu bom filho'. Ele sentou-se e a coisa que
escreveu foi o seguinte: 'maohds jkljda ljkldajn'.
Demorei algum tempo a avaliar.
Perguntei-lhe se aquilo era sueco - parecia sueco. Eu tinha lido
Stieg Larsson na língua original e, embora não percebesse patavina
de sueco, pareceu-me ver ali alguma semelhança. Ele respondeu que
não. Explicou então que, em casa, escrevia num computador gigante e
adaptado, com teclas do tamanho de chávenas de chá, pois possuindo
cascos daquele tamanho não conseguia escrever com a precisão
idealizada.
Dei uma pancada no dorso do Bocas
e disse-lhe que não se preocupasse, que faria dele número 1 do top
do New York Times. Ele mugiu tão alto de alegria que eu despertei
desse sonho-filme espectacular que vivia.
Levantei-me e disse para mim
mesmo: 'daqui em diante serei editor. Vou realizar os sonhos dos
jovens desta cidade!'
Eram quase 11H e fui de pijama
para a missa. Vesti a batina por cima do pijama cheio de baba seca e
dei início à sessão.
Estavam lá duas dezenas de
pessoas. Mirei-os e disse:
“Antes de orarmos ao Senhor,
vou fazer uma perguntinha. Quem daqui tem o sonho de ser um
escritor?”
Ninguém respondeu. Então,
liguei as colunas da igreja e carreguei no play da aparelhagem
que estava pousada por baixo do altar. Uma voz sombria e impactante -
a voz de Deus, caso ninguém tenha percebido - deixou no ar a mesma
pergunta que eu havia feito.
Todos puseram os dedos no ar, até
eu, que me deixei levar pela emoção. Analisei os paroquianos e
mandei que os analfabetos, os tesos, os bebés e aqueles que
morreriam dali de três meses baixassem as mãos.
Sobravam três. Três aspirantes
a escritores diante de mim, que possivelmente levaria à glória e a
qualquer livraria do país.
Perguntei ao primeiro, um velho
de setenta anos mas com uma boa reforma, sobre o que queria escrever
ele. Respondeu que tinha uma ideia havia uns anos, onde um
extraterrestre que afinal não era um extraterrestre mas sim um
humano vindo do futuro, regressaria ao passado para engravidar a avó,
quando era nova, e, assim, torná-lo a ele um ser todo-poderoso,
capaz de combater com sucesso uma terrível força alienígena -
esses sim mesmo extraterrestres obviamente - que atacaria o planeta
Terra no seu tempo. Disse-lhe que aquilo parecia demasiado real para
uma ficção, pelo que o expulsei da igreja, dizendo-lhe que para
voltar teria de ser novamente baptizado, pagando, claro, a
gratificação pela cerimónia.
O segundo tratava-se de um homem
de meia-idade que inventou no momento uma história romântica entre
um casal. Ela seria sado-masoquista e ele um leitor compulsivo dos
escritos de Sade. Contudo, nenhum deles estava inteirado acerca dos
gostos do outro. Até que um dia as suas mentes se fundiriam numa
relação tórrida e viveriam felizes para sempre caso a empresa
produtora de roupa de cabedal não tivesse falido. Perguntei-lhe se
tinha dinheiro para pagar a edição assim como os meus honorários,
que era uma coisa normal no meio que eu tão bem conhecera durante o
meu sonho-filme. Ele disse que tinha acabado de pagar a boda de
casamento da filha e que de momento não tinha grande
disponibilidade. Ordenei-lhe que voltasse quando a sua conta bancária
crescesse.
A terceira aspirante era uma
mulher de uns cinquenta anos. Perguntei-lhe a história que queria
contar. Ela disse que podia ser a dela. Casara com o dono da
mercearia e perdera a virgindade com ele. Desde então copulavam
todos os domingos depois de ver o programa da tarde do canal que
transmitia a festa mais atractiva. E era isso. Questionei-lhe se a
mercearia tinha dívidas. Ela disse que não. Contratei-a nesse mesmo
momento, ou melhor, contratou-me ela a mim.
Daí em diante teria de mandar
tudo para a gráfica e roubar uma capa nas imagens do windows.
Não ficou muito caro à senhora, a Josefina. Aliás, seria uma
ninharia comparando com o que ganharia quando eu fizesse dela uma
escritora famosa.
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