05/02/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JAIME – PARTE VII

E pronto. Estou chateado. É sexta-feira e suei a semana inteira, como diz aquele rapper famoso do qual não recordo o nome. Também não é fácil lembrarmo-nos de nomes de cantores que parecem modelos de automóveis antigos da citroen, como ZX ou AX. Mas o que importa aqui é a minha dor. Desde segunda-feira andei de banco em banco a tentar obter um investimento para o meu negócio, aquele das meninas. Foi tudo em vão, não obstante ter enfiado o meu melhor fato, o único aliás. Nem a calça e casaco pretos acompanhados de camisa branca adiantou. O Armando, quando me viu, disse que eu parecia um cangalheiro - não utilizando esse termo, que ele não sabe o que é - mas dizendo que eu me assemelhava àqueles gajos que levam Mercedes cinzentos ou pretos para os funerais e flores com os caixões. Claro que engoliu as mesmas palavras juntamente com um fio de sangue quando lhe dei um soco nos dentes. Mas o Armando é o Armando e somos amigos do peito, por isso logo pago-lhe uma mini e tudo passa. Ele até me deu uma ideia. Talvez me torne agente funerário se o meu projecto não for avante. Afinal cada vez morre mais gente, agora que ninguém quer saber dos velhos.
Como dizia eu, recebi negas de todos os bancários que me receberam. Sim, porque nem todos o fizeram... Arrogantes! Só desculpas atrás de desculpas. Que eu não era cliente - mas que raio! Não é suposto captarem novas pessoas para as suas agências? -; Que eu não tinha um bom nome no Banco de Portugal – claro que não, ninguém me dava oportunidade de vingar! -; Que esta não era uma boa altura de investir; Que o meu negócio não era, imagine-se, viável – onde é que já se viu? Eu até seria bom para o governo, pois desse modo a malta não teria de ir para o Brasil em busca de amor, logo ficaria mais barato aos cidadãos! -. Mas não! Não me deram uma chance para criar o meu próprio negócio.
Assim, vi-me obrigado a regressar a casa de mãos a abanar e espírito vazio. A canalhada não se calava e a mulher já tinha feito o comer. Tomei a refeição em silêncio, amuado. Ela perguntou-me o que eu tinha e refutei assumindo que me doíam as amígdalas. Questionou-me se, mesmo assim, eu conseguia respirar direito. Algo que ficou sem resposta, logicamente.
Quando terminei fui para o café, que estava repleto. Normalmente só enchia a partir das 22H. Todos me olharam de forma estranha quando entrei, como se todos estivessem à minha espera. Encolhi os ombros a pensar que estivam ressabiados por causa do Armando. Mas não. Ele veio ter comigo e pediu desculpa. Eu aceitei e cravei-lhe duas minis.
Então, de repente, aparece uma boazona na TV e todos ficam a olhar para ela. Era o sorteio do euromilhões e amaldiçoei-me porque me tinha esquecido de jogar. Os números começaram a sair e todos estavam agarrados aos seus bilhetes, embora tenha detectado que ocasionalmente olhava na minha direcção também. Entretanto, à quarta bola o Armando levantou-se. Tinha os olhos raiados e a boca aberta. Na primeira estrela estava já em cima da cadeira. Na segunda começou ao pulos e aos gritos. Berrava anunciando que tinha ganho e eu senti o meu peito a queimar. Ele continuou a festejar e todos o abraçaram. Todos, menos eu. Falei com Deus naquele instante. Perguntei-lhe por que raio tinha ele ganho quando não passava de um falhado que vivia na casa da sua mãe. Eu tinha quatro filhos maravilhosos e uma querida mulher para sustentar. Eram os cinco os olhos da minha vida.
Encarei o Armando, de bilhete na mão, agarrado a não-sei-quantos inúteis, e odiei-o naquele instante. Era inglório aquele prémio. Ele não o merecia. Agarrei na garrafa e parti-a na borda da mesa. Que nem um predador, arranquei para cima dele e enfiei-lhe o vidro nas costelas vezes e vezes sem conta. Os outros pararam de celebrar e nada fizeram. Limitaram-se a mirar-nos. O olhar do Armando, por sua vez, passou a revelar-se vago. O corpo dele deslizou, mas eu consegui apanhar o bilhete.
Agora era meu. Eu estava milionário. Mas a vida é ingrata. E, nos segundos seguintes, alguém me explicou que aquilo não passava de uma brincadeira, de uma pequena vingança por parte do moribundo por o ter agredido.
Larguei o bilhete, como se ele pertencesse ao Demónio. Mas era tarde demais. Estava a perder o Armando e nunca chegara a ganhar um euro que fosse quanto mais milhões deles.

http://vascoricardo.blog.com

2 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Excelente!
Já acabou?
No fundo parece-me k ainda falta qualquer coisa.Esperar para ver!

Vera N. (Sinfonia dos Livros) disse...

xiiiiii... "esfaqueou" o Armando... e agorA??!!!