CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JAIME
– PARTE VII
E
pronto. Estou chateado. É sexta-feira e suei a semana inteira, como
diz aquele rapper famoso do qual não recordo o nome. Também não é
fácil lembrarmo-nos de nomes de cantores que parecem modelos de
automóveis antigos da citroen, como ZX ou AX. Mas o que importa aqui
é a minha dor. Desde segunda-feira andei de banco em banco a tentar
obter um investimento para o meu negócio, aquele das meninas. Foi
tudo em vão, não obstante ter enfiado o meu melhor fato, o único
aliás. Nem a calça e casaco pretos acompanhados de camisa branca
adiantou. O Armando, quando me viu, disse que eu parecia um
cangalheiro - não utilizando esse termo, que ele não sabe o que é
- mas dizendo que eu me assemelhava àqueles gajos que levam Mercedes
cinzentos ou pretos para os funerais e flores com os caixões. Claro
que engoliu as mesmas palavras juntamente com um fio de sangue quando
lhe dei um soco nos dentes. Mas o Armando é o Armando e somos amigos
do peito, por isso logo pago-lhe uma mini e tudo passa. Ele até me
deu uma ideia. Talvez me torne agente funerário se o meu projecto
não for avante. Afinal cada vez morre mais gente, agora que ninguém
quer saber dos velhos.
Como
dizia eu, recebi negas de todos os bancários que me receberam. Sim,
porque nem todos o fizeram... Arrogantes! Só desculpas atrás de
desculpas. Que eu não era cliente - mas que raio! Não é suposto
captarem novas pessoas para as suas agências? -; Que eu não tinha
um bom nome no Banco de Portugal – claro que não, ninguém me
dava oportunidade de vingar! -; Que esta não era uma boa altura de
investir; Que o meu negócio não era, imagine-se, viável – onde é
que já se viu? Eu até seria bom para o governo, pois desse modo a
malta não teria de ir para o Brasil em busca de amor, logo ficaria
mais barato aos cidadãos! -. Mas não! Não me deram uma chance para
criar o meu próprio negócio.
Assim,
vi-me obrigado a regressar a casa de mãos a abanar e espírito
vazio. A canalhada não se calava e a mulher já tinha feito o comer.
Tomei a refeição em silêncio, amuado. Ela perguntou-me o que eu
tinha e refutei assumindo que me doíam as amígdalas. Questionou-me
se, mesmo assim, eu conseguia respirar direito. Algo que ficou sem
resposta, logicamente.
Quando
terminei fui para o café, que estava repleto. Normalmente só enchia
a partir das 22H. Todos me olharam de forma estranha quando entrei,
como se todos estivessem à minha espera. Encolhi os ombros a pensar
que estivam ressabiados por causa do Armando. Mas não. Ele veio ter
comigo e pediu desculpa. Eu aceitei e cravei-lhe duas minis.
Então,
de repente, aparece uma boazona na TV e todos ficam a olhar para ela.
Era o sorteio do euromilhões e amaldiçoei-me porque me tinha
esquecido de jogar. Os números começaram a sair e todos estavam
agarrados aos seus bilhetes, embora tenha detectado que
ocasionalmente olhava na minha direcção também. Entretanto, à
quarta bola o Armando levantou-se. Tinha os olhos raiados e a boca
aberta. Na primeira estrela estava já em cima da cadeira. Na segunda
começou ao pulos e aos gritos. Berrava anunciando que tinha ganho e
eu senti o meu peito a queimar. Ele continuou a festejar e todos o
abraçaram. Todos, menos eu. Falei com Deus naquele instante.
Perguntei-lhe por que raio tinha ele ganho quando não passava de um
falhado que vivia na casa da sua mãe. Eu tinha quatro filhos
maravilhosos e uma querida mulher para sustentar. Eram os cinco os
olhos da minha vida.
Encarei
o Armando, de bilhete na mão, agarrado a não-sei-quantos inúteis,
e odiei-o naquele instante. Era inglório aquele prémio. Ele não o
merecia. Agarrei na garrafa e parti-a na borda da mesa. Que nem um
predador, arranquei para cima dele e enfiei-lhe o vidro nas costelas
vezes e vezes sem conta. Os outros pararam de celebrar e nada
fizeram. Limitaram-se a mirar-nos. O olhar do Armando, por sua vez,
passou a revelar-se vago. O corpo dele deslizou, mas eu consegui
apanhar o bilhete.
Agora
era meu. Eu estava milionário. Mas a vida é ingrata. E, nos
segundos seguintes, alguém me explicou que aquilo não passava de
uma brincadeira, de uma pequena vingança por parte do moribundo por
o ter agredido.
Larguei
o bilhete, como se ele pertencesse ao Demónio. Mas era tarde demais.
Estava a perder o Armando e nunca chegara a ganhar um euro que fosse
quanto mais milhões deles.
http://vascoricardo.blog.com
2 comentários:
Excelente!
Já acabou?
No fundo parece-me k ainda falta qualquer coisa.Esperar para ver!
xiiiiii... "esfaqueou" o Armando... e agorA??!!!
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