CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
MOUSTAFA
(e Maria e Bruno) – PARTE II
O
primeiro episódio que tenho para vos contar remonta aos longínquos
dias em que andava na creche. Eram tempos radiosos. Nunca era o
último a acabar os trabalhos - a Maria e o Bruno terminavam sempre
depois de mim -, a educadora estava controlada - era propícia a
depressões -, já conseguia contar até 5 e reconhecia a primeira
letra do meu nome, o P.
Pois, na altura não me chamava
Moustafa, claro. Antes de mudar tratavam-me por Primo. Não, não
eram os meus primos que me chamavam Primo. Primo era mesmo o meu
nome. Que foi? Não me olhem assim! Fitem mas é o atrasado mental do
primo do meu pai, que por sua vez também é um atrasado mental, que
ao registar-me comunicou ao também atrasado mental do funcionário -
por acaso um meio-irmão da minha mãe - 'Primo João', em resposta à
questão: 'como se chama o menino?'
Portanto, agora é
M-O-U-S-T-A-F-A, OK? E com todas essas letrinhas.
Dizia eu que tinha 3 anos quando
o grande e primeiro acto da minha liderança ocorreu. Na verdade,
tinha 3 anos e 10 meses, mas como ainda não fazia determinadas
coisas que os meus colegas faziam, como juntar várias palavras na
mesma frase, comer sozinho ou... largar a fralda, prefiro assumir que
tinha simplesmente 3 anos. E foi neste último ponto que despertei
para a liderança.
Já nessa altura me via que nem
um autêntico Napoleão Bonaparte, mas sem cavalo branco como aquele
que está representado num quadro famoso pintado por um senhor
chamado João Luis David - não sei se ele era das Caldas da Rainha,
se de Vila Real, não me recordo - que hoje em dia deve estar exposto
no Louvre em Madrid - ou será em Londres? Bem, mas não pensem que
eu sou tão baixo quanto ele era - dizem as más línguas que ele
andava de tacões o falhado - porque mesmo com 3 anos eu já era
maior do que as miúdas do berçário. Ah e o cabelo dele era mais
oleoso do que o meu, se bem que eu também não uso chapéus e todos
sabemos que os chapéus não deixam o cabelo respirar.
Não importa. O que interessa é
que o Napoleão se lançou à conquista da Europa. Eu segui as suas
pisadas na creche.
Assim, o ponto que fez despertar
a minha vontade de liderar foi o facto de ainda usar fraldas naquela
altura. Não era uma questão de querer até, era mais porque me
borrava todo sempre que não devia. Atenção! O facto de haver,
hoje em dia, quem me chame de merdas não tem a ver com isto, porque
as pessoas que sabem desta particularidade, para além da Maria e do
Bruno que estão aqui a espreitar ao meu lado, foram totalmente
trucidadas por mim.
Houve, portanto, um dia em que eu
estava na casa de banho sentado numa daquelas micro-sanitas. A
auxiliar e a educadora faziam figas enquanto me seguravam pelas
pernas, mantendo-me sentado em cima do tampo. Eu não queria estar
ali desnudado da cintura para baixo, porque sempre tinha ouvido dizer
que havia crocodilos e ratos nos esgotos, e não queria ser
surpreendido por nenhuma dessas espécies. Enquanto isso, a Maria e o
Bruno entoavam cânticos de incentivo e batiam palmas. Por momentos
cedi e fiz força para ajudar a gravidade a agir. Eu sabia que tinha
a cara vermelha e aquela era uma etapa importante para mim. De vida
ou de morte.
E então a Julianinha - esse
demónio um par de meses mais nova do que eu - entrou no WC. Sabem o
que ela fez?
Riu-se! Riu-se de mim! Que
descaramento! Depois de eu ter sido tão bom para ela! Riu-se pelo
facto de eu não conseguir obrar - ou largar o tijolo para quem não
for tão fino quanto eu e não entenda o seu significado. Isto depois
de eu lhe ter emprestado o lápis de cera cor-de-rosa!
Bem, é certo que a reacção
dela me deu a volta à barriga e eu descarreguei a tripa nesse
instante. Não obstante, ela riu-se!
Foi uma grande naifada no meu
coração.
Por isso não esqueci. Meditei
durante dias, vi filmes de guerra, fingi que lia literatura de
espionagem, preparei-me para a vingança.
Então,
passado uma semana, enquanto ela dormia o sono da tarde, escapuli-me
e roubei-lhe a Barbie preferida que estava pousada ao lado do
colchão. E sorri. Eu tinha a mesma fralda desde a manhã. Não foi
confortável, mas não me queixei à educadora e tinha nela acumulado
os restos de várias refeições atrasadas. Ora, essa Barbie fez uma
prolongada viagem pelas minhas partes mais íntimas até ganhar uma
tonalidade típica de quem andou a bronzear-se.
Apreciei o resultado da minha
acção e voltei a sorrir. Percebi que seria um líder, um vencedor.
Depois devolvi-lhe a boneca ainda ela dormia e deitei a fralda fora.
Fui ter com a educadora e expliquei que estava pronto para subir à
sanita de livre e espontânea vontade.
Ela pegou na minha mão e
levou-me. Estava tão satisfeita comigo que nem escutou o grito da
Julianinha ao acordar.
3 comentários:
O máximo!
Vejam bem como um trauma de infância pode mudar literalmente a personalidade de uma pessoa...
Afinal o autor sabe do que fala...parece que a mãe o vestiu de sevilhana num certo Carnaval...ficou traumatizado para sempre.
E os seguidores dois autênticos totós!
Vamos continuar à espera dos folhetins de quinta-feira...
Adorei!
Visto mais uma vez!
Porque dá gosto e gozo lê-lo e relê-lo.
Um tipo perigoso, sem dúvida...
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