09/05/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


MOUSTAFA (e Maria e Bruno) – PARTE II


O primeiro episódio que tenho para vos contar remonta aos longínquos dias em que andava na creche. Eram tempos radiosos. Nunca era o último a acabar os trabalhos - a Maria e o Bruno terminavam sempre depois de mim -, a educadora estava controlada - era propícia a depressões -, já conseguia contar até 5 e reconhecia a primeira letra do meu nome, o P.
Pois, na altura não me chamava Moustafa, claro. Antes de mudar tratavam-me por Primo. Não, não eram os meus primos que me chamavam Primo. Primo era mesmo o meu nome. Que foi? Não me olhem assim! Fitem mas é o atrasado mental do primo do meu pai, que por sua vez também é um atrasado mental, que ao registar-me comunicou ao também atrasado mental do funcionário - por acaso um meio-irmão da minha mãe - 'Primo João', em resposta à questão: 'como se chama o menino?'
Portanto, agora é M-O-U-S-T-A-F-A, OK? E com todas essas letrinhas.
Dizia eu que tinha 3 anos quando o grande e primeiro acto da minha liderança ocorreu. Na verdade, tinha 3 anos e 10 meses, mas como ainda não fazia determinadas coisas que os meus colegas faziam, como juntar várias palavras na mesma frase, comer sozinho ou... largar a fralda, prefiro assumir que tinha simplesmente 3 anos. E foi neste último ponto que despertei para a liderança.
Já nessa altura me via que nem um autêntico Napoleão Bonaparte, mas sem cavalo branco como aquele que está representado num quadro famoso pintado por um senhor chamado João Luis David - não sei se ele era das Caldas da Rainha, se de Vila Real, não me recordo - que hoje em dia deve estar exposto no Louvre em Madrid - ou será em Londres? Bem, mas não pensem que eu sou tão baixo quanto ele era - dizem as más línguas que ele andava de tacões o falhado - porque mesmo com 3 anos eu já era maior do que as miúdas do berçário. Ah e o cabelo dele era mais oleoso do que o meu, se bem que eu também não uso chapéus e todos sabemos que os chapéus não deixam o cabelo respirar.
Não importa. O que interessa é que o Napoleão se lançou à conquista da Europa. Eu segui as suas pisadas na creche.
Assim, o ponto que fez despertar a minha vontade de liderar foi o facto de ainda usar fraldas naquela altura. Não era uma questão de querer até, era mais porque me borrava todo sempre que não devia. Atenção! O facto de haver, hoje em dia, quem me chame de merdas não tem a ver com isto, porque as pessoas que sabem desta particularidade, para além da Maria e do Bruno que estão aqui a espreitar ao meu lado, foram totalmente trucidadas por mim.
Houve, portanto, um dia em que eu estava na casa de banho sentado numa daquelas micro-sanitas. A auxiliar e a educadora faziam figas enquanto me seguravam pelas pernas, mantendo-me sentado em cima do tampo. Eu não queria estar ali desnudado da cintura para baixo, porque sempre tinha ouvido dizer que havia crocodilos e ratos nos esgotos, e não queria ser surpreendido por nenhuma dessas espécies. Enquanto isso, a Maria e o Bruno entoavam cânticos de incentivo e batiam palmas. Por momentos cedi e fiz força para ajudar a gravidade a agir. Eu sabia que tinha a cara vermelha e aquela era uma etapa importante para mim. De vida ou de morte.
E então a Julianinha - esse demónio um par de meses mais nova do que eu - entrou no WC. Sabem o que ela fez?
Riu-se! Riu-se de mim! Que descaramento! Depois de eu ter sido tão bom para ela! Riu-se pelo facto de eu não conseguir obrar - ou largar o tijolo para quem não for tão fino quanto eu e não entenda o seu significado. Isto depois de eu lhe ter emprestado o lápis de cera cor-de-rosa!
Bem, é certo que a reacção dela me deu a volta à barriga e eu descarreguei a tripa nesse instante. Não obstante, ela riu-se!
Foi uma grande naifada no meu coração.
Por isso não esqueci. Meditei durante dias, vi filmes de guerra, fingi que lia literatura de espionagem, preparei-me para a vingança.
Então, passado uma semana, enquanto ela dormia o sono da tarde, escapuli-me e roubei-lhe a Barbie preferida que estava pousada ao lado do colchão. E sorri. Eu tinha a mesma fralda desde a manhã. Não foi confortável, mas não me queixei à educadora e tinha nela acumulado os restos de várias refeições atrasadas. Ora, essa Barbie fez uma prolongada viagem pelas minhas partes mais íntimas até ganhar uma tonalidade típica de quem andou a bronzear-se.
Apreciei o resultado da minha acção e voltei a sorrir. Percebi que seria um líder, um vencedor. Depois devolvi-lhe a boneca ainda ela dormia e deitei a fralda fora. Fui ter com a educadora e expliquei que estava pronto para subir à sanita de livre e espontânea vontade.
Ela pegou na minha mão e levou-me. Estava tão satisfeita comigo que nem escutou o grito da Julianinha ao acordar.


3 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

O máximo!
Vejam bem como um trauma de infância pode mudar literalmente a personalidade de uma pessoa...
Afinal o autor sabe do que fala...parece que a mãe o vestiu de sevilhana num certo Carnaval...ficou traumatizado para sempre.
E os seguidores dois autênticos totós!
Vamos continuar à espera dos folhetins de quinta-feira...
Adorei!

Guiomar Ricardo disse...

Visto mais uma vez!
Porque dá gosto e gozo lê-lo e relê-lo.

Cristina Torrão disse...

Um tipo perigoso, sem dúvida...