26/09/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JEREMIAS – PARTE II

Sim, fui actor. E dos bons, bons para tornar as cenas más e assim destacar quem tinha algum talento.
Não o fui durante muito tempo. Mas foi uma experiência enriquecedora. O lugar ideal para conhecer gajas boas.
Fiz, durante a minha curta carreira, uma telenovela e dois anúncios.
Primeiro foram os anúncios.
Um sobre uma marca italiana de carteiras masculinas. Bem, não eram italianas, eram de Rio Tinto, mas o logótipo tinha as cores de Itália. Então, eu fui o protagonista - sempre me consideraram bonito e musculado e as pessoas davam valor a isso. As filmagens demoraram mais tempo do que o previsto, pois o guião não era fácil de memorizar. Mas esse atraso não se deveu a mim! Foi por causa minha colega de trabalho. Então era assim: eu saía de um café localizado na ria de Aveiro - se bem que parecia ser Veneza - todo cheio de estilo e com um andar determinado e a certa altura ela corria atrás de mim; metia-me a mão no ombro e sorria enquanto eu a olhava abismado; ela entregava-me uma carteira e dizia “esqueceste-te dela”; eu pegava no objecto que me pertencia e na sua mão e respondia “obrigado, não sabia o que fazer sem ela”; e ela “agora já sabe, pode pagar-me o almoço”. Depois a câmara focava os nossos dedos tocando-se e, claro, o logótipo da carteira. Cheguei a fazer-me a essa actriz, mas não era o meu tipo de gaja, se é que me entendem.
O segundo anúncio que fiz eu não falei. Limitava-me a exibir o meu porte atlético. Tratava-se de uma filmagem sobre uma clínica geral privada. Numa analogia a tempos idos, eu conduzia a carruagem que levava o médico a casa da donzela. Por isso limitava-me a gritar com os cavalos e a agitar as rédeas.
Só depois chegou o papel onde se tornou evidente a minha verdadeira classe, aquele acerca do qual me posso orgulhar.
Conhecem a série 'Morangos com Açúcar”? E o “Inspector Max”? Pois bem não era nenhuma delas. Tratou-se de uma telenovela da concorrência que não queria ser nem uma nem outra, mas antes uma mistura de ambas.
Em que consistia? Bem, era uma coisa extremamente inovadora!
Tudo era rodado num colégio privado, chamava-se 'Colégio da Cacharroada'. Vai daí, os personagens consistiam numa série de adolescentes, uns ricos e mimados, outros delinquentes de puro sangue. Isto foi algo que sempre admirei, um espaço onde os pobres tinham a capacidade para estudar no mesmo local que os ricos. Mas a parte gira era que os delinquentes praticavam o bem e eram amigos das amigas e os ricos roubavam os professores e faziam-se às empregadas do bar. E onde entra o “Inspector Max” nesta história? Pois. É que os estudantes do colégio eram cães, em vez de miúdos ou actores de 27 anos que, embora ninguém acreditasse, representavam papéis nos quais tinham 13.
Foi de facto uma excelente série de ficção. Era um luxo poder assistir ao desfile de cadelas de mini-saia e de cães com relógios da moda, carregando cadernos debaixo das patas e capacetes das scooters suspensos numa unha. Havia lutas cheias de uivos e rosnadelas, amassos envolto de pêlo e discussões aos latidos.
A sua exibição foi um êxito. Os três episódios gravados foram vistos por uma quantidade de gente superior ao número de habitantes de Santiago de Subirrafana.
Claro que após a passagem do primeiro episódio houve telespectadores a queixarem-se que não entendiam patavina do que os actores diziam. A produção contrapôs, argumentando que eram animais com Pedigree, de raça pura como bullmastiffs, pointers, setters ou chihuahuas. Até havia um campeão ibérico e que era o macho lá do sitio. Ainda assim o segundo e o terceiro episódios acabaram por ser transmitidos com legendas.
E o que fazia eu no enredo? Não, não fazia de cão. Fi-lo na festa de inauguração da telenovela, vestindo um fato cheio de pêlo que na altura foi alugado ao Canal Panda. Mas nas filmagens eu fazia de médico. Veterinário, aliás. Era o veterinário sexy e desejável e as cadelas adolescentes fingiam estar doentes para que pudessem ser socorridas por mim. Depois vinha aquela parte pedagógica em que eu não podia envolver-me com elas porque, para além de serem menores, eu pertencia a uma espécie diferente da delas, logo um futuro em conjunto seria inviável e até impossível.
Para além de mim, havia outra actriz humana. Era a avozinha adoptiva do tal cão premiado. Aprendi muito com ela nos bastidores, principalmente que ser actor não leva a lado nenhum. “Eu que o diga”, comentava ela com pesar “vê lá que tive de me sujeitar a fazer esta bosta de telenovela para poder pagar as contas”.
Nesse dia em que ela me contou isso chorámos em conjunto mesmo antes de nos termos comido.
Foi aí que decidi que ser actor não me levaria a lado nenhum.