CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JEREMIAS
– PARTE II
Sim,
fui actor. E dos bons, bons para tornar as cenas más e assim
destacar quem tinha algum talento.
Não
o fui durante muito tempo. Mas foi uma experiência enriquecedora. O
lugar ideal para conhecer gajas boas.
Fiz,
durante a minha curta carreira, uma telenovela e dois anúncios.
Primeiro
foram os anúncios.
Um
sobre uma marca italiana de carteiras masculinas. Bem, não eram
italianas, eram de Rio Tinto, mas o logótipo tinha as cores de
Itália. Então, eu fui o protagonista - sempre me consideraram
bonito e musculado e as pessoas davam valor a isso. As filmagens
demoraram mais tempo do que o previsto, pois o guião não era fácil
de memorizar. Mas esse atraso não se deveu a mim! Foi por causa
minha colega de trabalho. Então era assim: eu saía de um café
localizado na ria de Aveiro - se bem que parecia ser Veneza - todo
cheio de estilo e com um andar determinado e a certa altura ela
corria atrás de mim; metia-me a mão no ombro e sorria enquanto eu a
olhava abismado; ela entregava-me uma carteira e dizia “esqueceste-te
dela”; eu pegava no objecto que me pertencia e na sua mão e
respondia “obrigado, não sabia o que fazer sem ela”; e ela
“agora já sabe, pode pagar-me o almoço”. Depois a câmara
focava os nossos dedos tocando-se e, claro, o logótipo da carteira.
Cheguei a fazer-me a essa actriz, mas não era o meu tipo de gaja, se
é que me entendem.
O
segundo anúncio que fiz eu não falei. Limitava-me a exibir o meu
porte atlético. Tratava-se de uma filmagem sobre uma clínica geral
privada. Numa analogia a tempos idos, eu conduzia a carruagem que
levava o médico a casa da donzela. Por isso limitava-me a gritar com
os cavalos e a agitar as rédeas.
Só
depois chegou o papel onde se tornou evidente a minha verdadeira
classe, aquele acerca do qual me posso orgulhar.
Conhecem
a série 'Morangos com Açúcar”? E o “Inspector Max”? Pois
bem não era nenhuma delas. Tratou-se de uma telenovela da
concorrência que não queria ser nem uma nem outra, mas antes uma
mistura de ambas.
Em
que consistia? Bem, era uma coisa extremamente inovadora!
Tudo
era rodado num colégio privado, chamava-se 'Colégio da
Cacharroada'. Vai daí, os personagens consistiam numa série de
adolescentes, uns ricos e mimados, outros delinquentes de puro
sangue. Isto foi algo que sempre admirei, um espaço onde os pobres
tinham a capacidade para estudar no mesmo local que os ricos. Mas a
parte gira era que os delinquentes praticavam o bem e eram amigos das
amigas e os ricos roubavam os professores e faziam-se às empregadas
do bar. E onde entra o “Inspector Max” nesta história? Pois. É
que os estudantes do colégio eram cães, em vez de miúdos ou
actores de 27 anos que, embora ninguém acreditasse, representavam
papéis nos quais tinham 13.
Foi
de facto uma excelente série de ficção. Era um luxo poder assistir
ao desfile de cadelas de mini-saia e de cães com relógios da moda,
carregando cadernos debaixo das patas e capacetes das scooters
suspensos numa unha. Havia lutas cheias de uivos e rosnadelas,
amassos envolto de pêlo e discussões aos latidos.
A
sua exibição foi um êxito. Os três episódios gravados foram
vistos por uma quantidade de gente superior ao número de habitantes
de Santiago de Subirrafana.
Claro
que após a passagem do primeiro episódio houve telespectadores a
queixarem-se que não entendiam patavina do que os actores diziam. A
produção contrapôs, argumentando que eram animais com Pedigree,
de raça pura como bullmastiffs, pointers, setters ou chihuahuas. Até
havia um campeão ibérico e que era o macho lá do sitio. Ainda
assim o segundo e o terceiro episódios acabaram por ser transmitidos
com legendas.
E o que fazia eu no enredo? Não, não fazia de cão. Fi-lo na festa
de inauguração da telenovela, vestindo um fato cheio de pêlo que
na altura foi alugado ao Canal Panda. Mas nas filmagens eu fazia de
médico. Veterinário, aliás. Era o veterinário sexy e desejável e
as cadelas adolescentes fingiam estar doentes para que pudessem ser
socorridas por mim. Depois vinha aquela parte pedagógica em que eu
não podia envolver-me com elas porque, para além de serem menores,
eu pertencia a uma espécie diferente da delas, logo um futuro em
conjunto seria inviável e até impossível.
Para
além de mim, havia outra actriz humana. Era a avozinha adoptiva do
tal cão premiado. Aprendi muito com ela nos bastidores,
principalmente que ser actor não leva a lado nenhum. “Eu que o
diga”, comentava ela com pesar “vê lá que tive de me sujeitar a
fazer esta bosta de telenovela para poder pagar as contas”.
Nesse
dia em que ela me contou isso chorámos em conjunto mesmo antes de
nos termos comido.
Foi
aí que decidi que ser actor não me levaria a lado nenhum.
1 comentários:
Impagável!
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