05/12/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CARDOSO – PARTE III


Já viram um filme sobre um editor que decide lançar um autor em Nova Iorque, prometendo-lhe alcançar o topo da tabela do New York Times em escassos meses? Nunca viram? Nem eu. Mas decerto deve haver algum que conte uma história dessas, não acham? Daqueles com um orçamento inferior ao que eu ganho num ano e protagonizado por actores em fase descendente na carreira e actores novos que julgam possuir um talento que lhes permite fazer algo mais do que um simples videoclip musical sem diálogos de um cantor ainda menos famoso do que o próprio actor?
Tenho a certeza que deve haver um filme desses por aí. Se houver digam-me. Liguem para a linha de apoio dos padres aflitos e peçam para falar com a Doroteia que ela dar-me-á o recado pessoalmente. Mas telefonem apenas entre as 15H e as 17H, às terças e sextas, que é o único tempo que ela dispõe para fazer trabalho de caridade.
Ora bem. Nunca vi esse filme, mas sonhei com ele.
E, adivinhem, quem desempenhava o papel de escritor nesse meu sonho-filme? Não, não era eu. O escritor era o Bocas. Sabem quem é? Aquele d' As Aventuras do Bocas, o boi marado que não pára quieto na sua quinta. Na verdade o Bocas era um excelente autor. Falava sobre campos e acerca do contraste entre a cidade e o meio rural, um tema muito invulgar e cada vez mais raro por aí...
Bom, sendo o Bocas o escritor, quem acham que era o editor? Não, o editor não era o Tartaruga Genial do Dragon Ball. O editor era eu, pois claro.
E, no meu sonho-filme, eu não aparecia vestido de negro, à padre, nem de branco, à padre em horário de missa. Eu vestia-me à hippie e falava de um modo muito populista e teen para a minha idade.
Então tinha conhecido o Bocas porque ele andava pelas tertúlias assumindo que tinha um manuscrito genial. Pelo menos ia às tertúlias que eram realizadas em espaços abertos porque ele não conseguia passar pelas ombreiras das portas - o Bocas é bovino para pesar mais de meia tonelada.
Mal o vi acreditei logo nele. Tinha qualquer coisa, ou talvez me tivesse captado a atenção por o ter reconhecido da televisão. Mas logo no dia em que o conheci disse-lhe que o texto que me dera para ler era demasiado bom para ser dactilografado por um amador. Ele, orgulhoso, jurara pelos seus cornos que tinha sido ele mesmo a fazê-lo. Pedi-lhe que me provasse o que dizia. Fomos para a minha casa, sentei-o diante da minha secretária apetrechada com a máquina de escrever e disse-lhe 'senta-te e escreve, meu bom filho'. Ele sentou-se e a coisa que escreveu foi o seguinte: 'maohds jkljda ljkldajn'.
Demorei algum tempo a avaliar. Perguntei-lhe se aquilo era sueco - parecia sueco. Eu tinha lido Stieg Larsson na língua original e, embora não percebesse patavina de sueco, pareceu-me ver ali alguma semelhança. Ele respondeu que não. Explicou então que, em casa, escrevia num computador gigante e adaptado, com teclas do tamanho de chávenas de chá, pois possuindo cascos daquele tamanho não conseguia escrever com a precisão idealizada.
Dei uma pancada no dorso do Bocas e disse-lhe que não se preocupasse, que faria dele número 1 do top do New York Times. Ele mugiu tão alto de alegria que eu despertei desse sonho-filme espectacular que vivia.
Levantei-me e disse para mim mesmo: 'daqui em diante serei editor. Vou realizar os sonhos dos jovens desta cidade!'
Eram quase 11H e fui de pijama para a missa. Vesti a batina por cima do pijama cheio de baba seca e dei início à sessão.
Estavam lá duas dezenas de pessoas. Mirei-os e disse:
“Antes de orarmos ao Senhor, vou fazer uma perguntinha. Quem daqui tem o sonho de ser um escritor?”
Ninguém respondeu. Então, liguei as colunas da igreja e carreguei no play da aparelhagem que estava pousada por baixo do altar. Uma voz sombria e impactante - a voz de Deus, caso ninguém tenha percebido - deixou no ar a mesma pergunta que eu havia feito.
Todos puseram os dedos no ar, até eu, que me deixei levar pela emoção. Analisei os paroquianos e mandei que os analfabetos, os tesos, os bebés e aqueles que morreriam dali de três meses baixassem as mãos.
Sobravam três. Três aspirantes a escritores diante de mim, que possivelmente levaria à glória e a qualquer livraria do país.
Perguntei ao primeiro, um velho de setenta anos mas com uma boa reforma, sobre o que queria escrever ele. Respondeu que tinha uma ideia havia uns anos, onde um extraterrestre que afinal não era um extraterrestre mas sim um humano vindo do futuro, regressaria ao passado para engravidar a avó, quando era nova, e, assim, torná-lo a ele um ser todo-poderoso, capaz de combater com sucesso uma terrível força alienígena - esses sim mesmo extraterrestres obviamente - que atacaria o planeta Terra no seu tempo. Disse-lhe que aquilo parecia demasiado real para uma ficção, pelo que o expulsei da igreja, dizendo-lhe que para voltar teria de ser novamente baptizado, pagando, claro, a gratificação pela cerimónia.
O segundo tratava-se de um homem de meia-idade que inventou no momento uma história romântica entre um casal. Ela seria sado-masoquista e ele um leitor compulsivo dos escritos de Sade. Contudo, nenhum deles estava inteirado acerca dos gostos do outro. Até que um dia as suas mentes se fundiriam numa relação tórrida e viveriam felizes para sempre caso a empresa produtora de roupa de cabedal não tivesse falido. Perguntei-lhe se tinha dinheiro para pagar a edição assim como os meus honorários, que era uma coisa normal no meio que eu tão bem conhecera durante o meu sonho-filme. Ele disse que tinha acabado de pagar a boda de casamento da filha e que de momento não tinha grande disponibilidade. Ordenei-lhe que voltasse quando a sua conta bancária crescesse.
A terceira aspirante era uma mulher de uns cinquenta anos. Perguntei-lhe a história que queria contar. Ela disse que podia ser a dela. Casara com o dono da mercearia e perdera a virgindade com ele. Desde então copulavam todos os domingos depois de ver o programa da tarde do canal que transmitia a festa mais atractiva. E era isso. Questionei-lhe se a mercearia tinha dívidas. Ela disse que não. Contratei-a nesse mesmo momento, ou melhor, contratou-me ela a mim.
Daí em diante teria de mandar tudo para a gráfica e roubar uma capa nas imagens do windows. Não ficou muito caro à senhora, a Josefina. Aliás, seria uma ninharia comparando com o que ganharia quando eu fizesse dela uma escritora famosa.


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