16/01/2014

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CARDOSO – PARTE VIII


Era uma segunda-feira e acordei num tremendo desespero. Tinha ficado adoentado durante o fim-de-semana e a minha rotina acabou por ser missa-casa, casa-missa.
Um autêntico descalabro.
O motivo? Bem, a razão é que não vi filmes, nem séries, nem telenovelas, nem sequer o telejornal. Passei sábado e domingo a vomitar e a dormir, isto quando não celebrava missas. Pois, até a mim o vírus da gripe pega.
Levantei-me, portanto, sem ideias para passar o dia.
Revivi na minha cabeça alguns filmes que havia visto, mas não me recordei de nenhum que não tivesse representado na paróquia. Todos os filmes protagonizados pelo anão dos dentes assimétricos, também conhecido como Tom Cruise, já tinham sido explorados, assim como os do actor que nunca envelhece, o Pierce Brosman. A actriz que é podre de boa mas que nunca fez um papel de jeito, a Angelina, e aquele que era dançarino e que acabou por engordar enquanto esteve no desemprego, voltando a emagrecer depois de reaparecer, o Travolta, já estavam mais do que gastos.
Enquanto as gotas de chuva colidiam com o chão da calçada eu gritava desesperado, puxando pelos lençóis da minha cama. Perguntava aos céus a razão por estarem desocupados. Onde estaria Deus quando eu precisava dele? Eu necessitava urgentemente de um filme para poder fazer uma missa em grande. E então o sino do meu cérebro começou a entoar quando uma ideia me surgiu, ao dar por mim a uivar que nem um lobo.
O “Lobijovem”! Tinha-me esquecido de representar o lobijovem. Sabem? Aquele filme para adolescentes da idade da pedra em que o Michael J. Fox começa a transformar-se num lobisomem. Ao recordar-me desse, lembrei-me de outro. Não era um filme mas sim um desenho animado. Não é que o Son Goku se convertia numa espécie de lobo ou macaco ou gorila - ou lá o que era - a determinada altura também?
Era mesmo isso.
Obviamente não seria eu o lobisomem. Afinal nunca tive jeito para uivar.
Duas horas antes da missa começar, afixei um papel à porta da igreja onde se podia ler: “casting para lobisomem - se tens entre 0 e 100 anos e muita vontade de uivar aparece.”
Passado dez minutos havia dezenas e dezenas de pessoas à porta. Ainda eram 9H30 quando comecei a receber os paroquianos, juntamente com a minha equipa da sacristia. Nós éramos um belo de um júri. Também convidei aquele moço, um tal Simon não-sei-quantos. Contudo ele recusou, assumindo que tinha um encontro com a Paris Hilton, num hotel do grupo Hilton em Paris. Ele era bom a humilhar as pessoas e às vezes um lobo precisa de ser humilhado para que possa uivar com toda a sua pujança.
Na ausência do Simon não-se-quantos - o único senhor que usa risca ao meio e que todos pensam que esteja na moda - teria de caber a mim esse angustiante papel.
Quanto ao primeiro candidato, rejeitei-o sem que se fizesse ouvir. Era careca.
O segundo tinha as unhas roídas, pelo que foi pelo mesmo caminho.
O terceiro concorrente tinha placa, logo os seus caninos não se revelavam proeminentes como era suposto.
A quarta candidata miou em vez de uivar.
Os sete que se seguiram uivaram em português. Logicamente, o filme seria legendado e não dobrado.
O décimo segundo uivava bem, mas demasiado baixinho. Num outro dia teria utilizado o sistema de som, mas o dito cujo ficara inutilizado devido a um descuido do hipopótamo.
O décimo terceiro elemento a concurso uivou na perfeição.
Era aquele. Estava decidido. Ainda por cima era bem peludo, de tal forma que havia quem o chamava de Teddy Bear.
Às 11H00 dei início à missa. Decidi que fosse uma missa cantada em formato lobisês. O gajo uivou que se fartou, do princípio ao fim. E continuou a uivar até à noite. Todos pareciam enfeitiçados com a rouquidão do seu uivo. Ninguém deixou a igreja até a lua se pôr. Fiquei extasiado com o sucesso da minha acção. Os paroquianos tinham-se tornado cada vez mais devotos. E depois, os pêlos do uivador de serviço começaram a crescer e a engrossar. Sofreu uma espécie de mutação, ou várias até. Nos dentes, nos olhos, na pele e até no material. Não é que tenha olhado, mas vi a dona Amélia babar-se mais do que era habitual.
E então o uivador perdeu o controlo. Galgou bancos, derrubou castiçais e atacou pessoas. Claro que eu não podia permitir semelhante comportamento na casa de Deus. Saquei da minha Magnum 44 gamada no museu privado do Clint Eastwood e com a qual costumava caçar tordos, e fulminei-o com dois tiros no peito. Todos se calaram, as pombas brancas no átrio da igreja esvoaçaram, as velas eléctricas apagaram-se e um coração parou de bater.
Os paroquianos aguardavam a minha reacção. Eu encolhi os ombros, revirei os olhos e disse-lhes: “Graças a Deus que o Simon não-sei-quantos não estava aqui, senão o uivador sofreria antes de morrer.”
Alguém por entre o silêncio gritou que o jurado que comia a Paris em Paris se chamava Simon Cowell e que pertencia aos júris dos programas “Britains's Got Talent”, “Factor X” e “American Idol”. Olhei de soslaio procurando quem que me tinha corrigido. Desconfiei de três e disparei sobre cada um deles. Dei por encerrada a missa e expliquei que quem voltasse a desrespeitar o silêncio do luto dedicado ao uivador teria o mesmo destino.

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