30/05/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

MOUSTAFA (e Maria e Bruno) – PARTE V

No dia em que fiz 15 anos só a Maria e o Bruno apareceram na minha festa. Não foi preciso falarmos uns com os outros para percebermos a razão. Cada um de nós os três sabia qual era. Éramos fiéis às nossas convicções e fazíamos o que tínhamos a fazer. Quanto às convicções dos outros é caso para dizer: quais convicções?
Por isso, ignorámos os refrigerantes e os pãezinhos cortados em triângulo e fomos para o quintal.
Armámos uma tenda com capacidade para duas pessoas, calçámos as galochas que havia disponíveis, roubámos lanternas e vestimos aventais de cozinha - queríamos casacos militares, mas como não havia, cada um de nós enfiou um desses adereços de cor verde, pintados com melancias, galinhas e abóboras. Ah! E, para nos camuflarmos impecavelmente, quisemos pintar as maçãs do rosto com tinta escura, como vimos fazer no filme da moda 'O Predador'. Como não encontrámos, tivemos de roubar um pouco de estrume do agricultor que era meu vizinho. Até calhou bem para disfarçar o meu descontrolo intestinal que me azucrinava nesse final de tarde.
Por isso lá nos pusemos os três, aconchegadinhos - eu era a salsicha, a Maria e o Bruno eram o pão de cachorro -, de barriga para baixo e língua afiada pronta para debater ideias. Ou melhor, eu debatia, eles concordavam.
Tínhamos um propósito: combater os infiéis.
Decidimos portanto criar o manual de sobrevivência para as gerações futuras.
Discutimos durante horas e já os grilos tinham ficado roucos quando criámos os mandamentos da nossa mega-equipa. Mega em termos de qualidade, não em quantidade se bem que... não importa!
      1. Amar-nos, a nós, acima de todas as outras coisas (isto, na prática, faz com que todo e qualquer ser caminhante nos seja inferior);
      2. Não usar o nosso nome em vão (este também é válido para expressões como 'ó pá', 'meu', 'my friend', 'pst', 'moço' ou 'moça' e por aí fora);
      3. Lembrar o domingo para me santificar (esta frase não fez muito sentido, mas mistifica os nossos mandamentos);
      4. Honrar o pai Horácio e a mãe Guilhermina (os meus pais, ela por me ter parido, ele por ter permitido que eu seja como sou);
      5. Não matar (a não ser que seja a nosso mando, principalmente quando falamos de assassinato psicológico);
      6. Guardar a castidade das nossas palavras e das nossas obras (sim, pois nós falamos e praticamos a verdade);
      7. Não roubar (a não ser que seja justificado por algo de nosso interesse);
      8. Não levantar falsos testemunhos (como se fossemos capazes!);
      9. Guardar a castidade nos pensamentos e nos desejos (na realidade nunca soube o que isto quer dizer mas achei que ficasse pomposo e, de qualquer forma, foi a Maria que teve a ideia quando tive de ir à casa de banho);
      10. Não cobiçar as coisas do próximo (excepto aquilo que queremos).
E durante anos e anos regemo-nos por estes mandamentos. Qualquer semelhança que possais detectar relativamente aos mandamentos da igreja católica é pura coincidência, até porque eu não falo hebraico, e toda a gente sabe que a placa foi gravada nessa língua.
Seguindo estes princípios tornámo-nos num homem, num homenzinho - o Bruno - e numa mulherzinha - a Maria - espantosos.
Ainda não somos mas um dia tornar-nos-emos bem-sucedidos, melhores que todos, piores que ninguém.
E falo disto porquê?
Porque faz hoje duas décadas que concretizámos estes mandamentos. Por isso saímos à rua para festejar: beijámo-nos uns aos outros (1), escrevemos os nossos nomes por toda a parte (2), curiosamente era um domingo (3), fomos visitar os meus pais ao lar clandestino (4), não nos matámos uns aos outros (5), pensámos em nós e praticámos o que sentimos (6), roubámos só para mostrar que apenas um de nós podia quebrar a regra (7), não fomos capazes de deixar de levantar boatos porque nunca o fomos (8), tivemos pensamentos puros (9) e andámos de olhos vendados porque era impossível não cobiçar o que quer que fosse (10).
Assim, terminámos o dia felizes e com alguns galos nas cabeças.


1 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Como sempre, mais uma crónica deliciosa que nos traz à memória a irreverência da Adolescência!
Fartei-me de Rir,está um espectáculo!