02/01/2014

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CARDOSO – PARTE VI


Ontem adormeci com uma ideia na cabeça. Hoje acordei e a ideia permaneceu. Mais! Até se desenvolveu.
Pergunto, qual a cerimónia católica onde vejo mais sorrisos? O casamento. Quer dizer, pelo menos em termos médios, porque já vi noivos chorarem e, acreditem, não podia ser alegria. Eu vi os véus serem levantados. Vi a cara delas. Definitivamente não era de alegria.
E agora questiono novamente, qual a cerimónia católica que envolve mais lágrimas? O funeral. Também é verdade que já vi confetes na altura em que o caixão descia em direcção ao buraco cavado ou uma orgia na casa de banho logo após o encerramento do ritual.
E do que me lembrei? Bem, achei que seria interessante trocar a envolvência de um casamento com a de um funeral. Portanto, o objectivo é tornar o matrimónio um acto de tristeza assim como transformar o enterro numa celebração alegre.
Porque me lembrei de fazer isto? Da mesma forma que jovens venderam a virgindade através do ebay ou que os comediantes portugueses insistem em vestir-se de mulher, faço-o porque posso. Isso mesmo, pelo simples facto de poder fazer o que me apetece.
Durante a manhã preparei o meu novo discurso para o casamento das 13H e o funeral das 16H.
A noiva, vestindo de negro, entrou ao som da música fúnebre do Chopin - vocês sabem, aquela muito famosa, que começa com um tchan-tchan-tchan-thcan tchan-tchan-thcan-thannnn, seguido de um tinoninoninoninonino alucinante. As flores que enfeitavam a igreja não eram ramos, mas sim coroas. O noivo que esperava a amada chorava desalmadamente, gritando ocasionalmente um longo e arrastado “porquê?” As pessoas que a viam passar comentavam “Meu Deus, são tão novos para partir, este mundo é tão ingrato” - claro que eles iam partir para África do Sul porque neste país existem poucas oportunidades para os recém-licenciados. Eles juntaram-se no altar e deram as mãos, sem sorrirem um para o outro. E então eu falei:
“Meus senhores e minhas senhoras, sejam bem-vindos ao funemónio da Raquel e do Marco, que desta forma decidem acabar com as suas vidas. Mas a vida é eterna, ao lado de Deus. Deus estará presente no leito deste casal que acaba de se reunir sempre que o Marco passar a noite fora em Joanesburgo, provavelmente num bar de strip em vez das reuniões de negócios que argumentará. Para eles uma vida termina hoje e outra começa. Não é caso para derramar lágrimas. Podia ser pior. Podiam ser cerrados a meio ou serem desmembrados por quatro cavalos puxando em direcção opostas como se fazia antigamente. Nunca ninguém disse que ia ser fácil. Mas o Senhor acompanha-vos nesta jornada terrível e dolorosa. Esta união será eterna, como se alguém acorrentasse estes jovens numa masmorra cheia de outros reclusos fedorentos e leprosos, isto numa metáfora alusiva às adversidades da vida. E mesmo quando a Raquel e o Marco morrerem e se juntarem a Deus permanecerão lado a lado, como gémeos siameses. A única coisa que espero é que morram novos, porque, segundo vi num filme, lá no céu, vemo-nos uns aos outros da mesma forma com que deixamos o mundo. Assim, desejo-vos sorte, para não terem de encarar na eternidade a flacidez da pele de um e a ausência de dentes do outro. Isto não contando com micoses, impotência, reumatismo, unhas enegrecidas, furúnculos diversos ou problemas na coluna. O que vos resta, caso morram velhos, é a deficiência visual e auditiva, capaz de atenuar a podridão dos vossos corpos. Mas como nem tudo é mau, vamos dar início à cerimónia.”
Mais tarde preparava o povo para enterrar a Gervásia da Ressureição, uma mulher de uns quarenta anos morta por um ataque cardíaco fulminante. O arranjo floral era primaveril, apesar de ser Inverno, e a fragrância a rosas pairava no ar. A defunta vestia um saia-casaco branco com nuances em tons de cor-de-laranja e quando o povo se reuniu no cemitério - não dei a missa porque não cabia toda a gente dentro da igreja - havia um camião ambulante que andava às voltas, entoando repetidamente a música do Eminem “Go to sleep Bitch... Die!!!” Havia também roulottes vendendo cachorros-quentes e Super Bock a metro. Antes de enterrar a morta, decidi dirigir umas palavras aos amigos e familiares da patroa.
“Meu povo, como é que é?! Daqui é o padre Cardoso Tenebroso! Woohoo, vai uma onda da esquerda para a direita?! 'Bora lá pessoal. Bem, já chega, comportem-se. Estamos aqui reunidos para celebrar o funeramento da nossa patroa Gervásia. É com alegria e muita satisfação que a vejo juntar-se à natureza, a Terra-Mãe, criada por Deus-Pai. Agora que penso nisso, pergunto-me como terão concebido estes filhos todos. Bem, isso não importa para nada. O que é relevante é que a Gervásia parte deste lugar para um mundo melhor. Sim, o mundo da terra, rico em minerais e vida selvagem. E ela até tem muita sorte porque este solo é muito fértil e aqui qualquer coisa floresce. Desconfio que se plantasse um tijolo, nasceria não uma casa mas sim um palacete pintado de paredes e abóbadas douradas. Portanto, a nossa Gervásia encontrará a felicidade. Nunca estará só, pois estará sempre acompanhada por pequenos animais e bactérias ao longo dos primeiros meses. Uma folia! Quem não gostaria de ser comido durante semanas a fio sem parar? Eu gostaria. E a Gervásia também, posso assegurar. Depois restarão os dentes e os ossos, e lá a desenterraremos. Se eu ainda estiver por cá daremos uma nova festarola. Por isso gargalhemos uma última vez pela Gervásia. Ela merece! E quem não encontrar alegria para fazê-lo que se recorde que foi ela quem lançou o boato na net de que o presidente da junta era na verdade o chupa-cabras e que antes de mudar de identidade era conhecida como Monica Lewinsky, que, felizmente, mudou de nome mas manteve intacto o seu talento natural.”
Acabei por chegar a casa estafado mas com o sentimento de dever cumprido. Liguei a televisão e vi um filme que nunca esquecerei.


1 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Entre a Gervásia da Ressurreição e a Raquel e o Marco ,ri-me tanto que até me dói a barriga...
Este episódio está fenomenal e o Padre Cardoso até de noite pensa no que há-de fazer de dia...
kkkkkkkkkkkk.............