Eram quatro da madrugada e não conseguia dormir. A noite estava quente e abafada. Acabara de ler Sputnik Meu Amor, de Murakami e não conseguia conciliar o sono. Para piorar as coisas tinha deixado acabar os cigarros. Por isso, foi com determinação que saí da cama decidido a ir procurar tabaco, nem que tivesse de percorrer a cidade inteira.
Lavei a cara, penteei o cabelo e tropecei no gato, que fugiu espavorido. Saí para a rua e, de repente, lembrei-me de Pierre. Era provável que algures nas ruas de Braga deambulasse perdido na noite o meu amigo que se escapara há uns tempos de Guerra e Paz. Seria agradável encontrá-lo naquela altura; decerto o dia amanheceria mais rapidamente após uma bela conversa com Pierre.
Caminhei lentamente, como que a dar tempo ao meu amigo russo para que cruzasse o seu caminho com o meu. Acabara de percorrer a Avenida 31 de Janeiro quando, na intersecção com a Avenida Central dou de caras com Pierre, em amena cavaqueira com o velho Nakata, o velhote de Murakami, acabado de sair da prisão por ter feito chover preservativos no dia da visita do Papa ao Japão.
Cumprimentei-os, obviamente, à maneira ocidental, evitando os embaraçosos beijos russos e as desajeitadas vénias japonesas. Nakata trazia um sorriso nos lábios, certamente provocado por alguma parvoíce existencial que Pierre teria acabado de dizer. Aproveitei a deixa:
- Meu velho Nakata, sempre divertido!
Pierre não deixou o velho responder:
- Na minha companhia, e desde que deixei de “ruminar” as patetices existenciais a que aquele lunático do Tolstoi me sujeitava, Nakata só ri. E rirá até que lhe caiam os dois dentes que lhe restam.
- Tens mesmo muita piada, ó gordo! Fica sabendo que não preciso de muitos dentes para ver as estrelas – respondeu o orgulhoso ancião.
Nenhum de nós entendeu muito bem o que Nakata queria dizer, mas a minha reacção e a de Pierre vieram em uníssono: uma sonora gargalhada que deve ter acordado umas quantas beatas desta piedosa cidade.
Ainda as nossas gargalhadas ecoavam na noite bracarense quando, saído da escuridão, se aproximou lentamente um vulto de onde se destacava apenas o ponto vermelho de um cigarro aceso. Sinistro, de chapéu antiquado e gabardina cinzenta mau grado o calor de verão, emergia da noite a figura negra do Inspector Fumero, de A Sombra do Vento. Nakata foi o único de nós que teve espírito para falar e sem qualquer cumprimento, disparou:
- Que faz aqui este abutre cavernoso, saído das entranhas podres do fascismo espanhol?
Por detrás do cigarro emergiu um sorriso sinistro, feito de dentes amarelos no rosto acinzentado e esquelético de Fumero.
- A moral e os bons costumes são universais. Manda a ordem desta Nação que esclareçamos o que fazem três cidadãos suspeitos, em inoportunas gargalhas, a interromper o sossego desta piedosa cidade.
Confesso que senti um arrepio gélido subir-me pelas costas. Instantaneamente, pensei que se ali estivesse Mr. Norrel, rapidamente aquele funesto Inspector seria transformado numa sanduíche de presunto.
Pierre mantinha-se calado, certamente ensimesmado na sua eterna tarefa de procurar o sentido da vida. E foi mais uma vez o velho Nakata quem decidiu intervir. Levantando o dedo indicador direito, dirigido ao nariz pedunculado de Fumero, sorriu e proferiu uma simples frase:
- Duas sandes de presunto e um maço de Marlboro Lights!
E Fumero desapareceu. No seu lugar, no chão, dois pequenos embrulhos em papel de alumínio e um maço de Marlboro Lights.
Mordendo avidamente as suas sanduíches, Pierre e Nakata viraram-me as costas com um seco “até breve, Portuga”.
Com o maço de tabaco na mão, fiquei ali especado por uns segundos, vendo-os afastarem-se e perguntando a mim próprio: “que vieram estes dois fazer a Braga nesta altura?”. De repente, lembrei-me. Como pudera ser tão distraído! É óbvio: no dia seguinte havia futebol no estádio AXA.
Imagem retirada daqui:http://avenidacentral.blogspot.com/
2 comentários:
Olá Manuel,
Alucinações muito interessantes.
Se sempre que não conseguires conciliar o sono tiveres alucinações destas "desejo ;)" que isso aconteça muitas vezes.
Gostei, um abraço
Acho que este é o efeito que Murakami faz em toda a gente. :) Sputnik, meu Amor foi o primeiro que li dele, e desde então tornou-se o meu autor preferido! :D
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