02/05/2011

Crónica do Pássaro de Corda - Haruki Murakami

Nem sei por onde começar. Talvez pelo fim. Trata-se de um livro fantástico. Talvez o melhor de Murakami.
Este livro é um verdadeiro tratado.
Tudo começa com um enquadramento muito simples. Ele, Toru Okada está desempregado. Trabalhava numa firma de advogados mas despediu-se. Ela, a esposa Kumiko trabalha como editora de uma revista de dietética e alimentação natural. Um emprego vulgar e uma vida aparentemente vulgar. Viviam com um gato, Noboru Wataya, a quem tinham dado o nome do irmão de Kumiko. Um dia o gato desapareceu. E é a partir daqui que tudo começa. Mas começa o quê? Uma série interminável de episódios cada vez mais estranhos à luz das mentes normais. Acontece que não há mentes normais. Não há lógica na vida e essa é uma das coisas mais importantes que Murakami nos ensina.
As personagens vão aparecendo e desfilando perante nós, cada vez mais surpreendentes e encantadoras, quer pela bondade quer pela maldade. Tudo isso é humano. Como humanos são os sonhos e as fantasias.
Toru começa a refugiar-se num poço seco de uma casa maldita. Aí ele vive momentos encantados onde o real e o sonho se misturam. Como na vida.
Tudo em Murakami é simbólico. Mas tudo é explicado. Na mente do leitor vão-se explicando, por si, todos os signos. Eles envolvem significado e significante, que Murakami procura aclarar sem cair naquele simbolismo obscuro que muitos autores cultivaram.
À procura de um gato. Um gato que simboliza a liberdade e a personalidade; aquilo que falta ao ser humano: a coragem de desafiar destinos, de associar sonhos à realidade, de passar fronteiras.
Tudo se passa como as personagens procurassem a todo o custo chegar a situações-limite, sem as quais não há sentido para a vida. No centro do enredo encontram-se ligações às terríveis guerras que o Japão enfrentou: a invasão da Manchuria nos anos 30, com a consequente e dramática guerra sino-japonesa e a segunda guerra mundial. Situações-limite que fizeram nascer um novo Japão. Como na vida das pessoas: é preciso ir ao fundo do poço. É preciso descer ao fundo quando se desce e subir ao topo mais alto quando se sobe.
Ao longo de seiscentas e trinta páginas, Murakami leva-nos pela mão ao encontro das mais absurdas situações. E depressa descobrimos que o absurdo é aparente. Tão aparente como a lógica das coisas. Não há lógica; há apenas aparências. Tudo à nossa volta são mistérios que escondemos para enganar a vida e a consciência.
O exemplo mais notável, mais profundo encontra-se nas últimas páginas do livro. Vamos ver se consigo explicar isto evitando os malditos spoilers: alguém se encontrava sequestrado. E o sequestro acabará da forma mais bela que este humilde leitor poderia imaginar. A personagem estava sequestrada pela sua própria mente. Ela não foi raptada; ela entregara-se ao sequestrador. O que tem isto de encantador? É que de repente descobrimos que aquela personagem e aquela situação nada têm de estranho. Ela é igual a qualquer um de nós: entregara-se a um sequestro, como todos nós. As piores prisões não envolvem grades nem correntes: somos nós que as construímos.
No final do livro, como sempre, só apetece sorrir e dizer bem alto: ARIGATOU, Murakami.

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