28/03/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


ROSALINA – PARTE VI


Hoje sinto-me inspirada.
Ontem à noite assisti a uma entrevista de um dos meus maiores ídolos. Tinha saudades dele, pois não lhe punha a vista em cima há dois anos. Admiro-o pela forma como me cativa. Foi primeiro-ministro de Portugal durante alguns anos, mas, quando o seu mandato foi quebrado, infelizmente partiu. Mas agora voltou. Viva ele!
Ora, o meu herói tem o cabelo grisalho, quase branco e parecido com o do George Clooney, o nariz esticado como o do Pinóquio, um sorriso que espelha confiança da mesma forma que o de um monárquico português cujo nome não me recordo e fala de um jeito quase hipnótico que nem o Luther King. Senti-me preenchida quando o escutei a disparar em todas as direcções e a refutar as acusações que sobre ele lançaram nos últimos tempos. E mesmo assim, deu a cara. Mal abriu a boca, todas as partículas do meu ser vibraram.
Que homem!
Para além disso, tem um nome impactante, de estrela. Até nisso ele caiu em graça, porque quando o pronuncio recordo-me do grande filósofo e do craque de futebol, mas também do pincher da minha vizinha, que é uma fofura de animal.
É isso que almejo, ser como ele, ter a sua atitude, iludir tanto os outros que eu mesma acabo por acreditar. E é dessa forma que encaro os meus adversários assim que entro numa sala de um tribunal: por mais culpado que pareça o meu cliente, faço dele uma espécie de santo.
Por isso hoje me sinto assim. Pois sei que o D. Sebastião voltou.
E assumo a postura dele. Perco o medo e incho o peito como se não me importasse de o oferecer às balas. Ergo o queixo ainda mais e puxo os ombros para trás. Fico segura, dentro do meu mundo, para vencer no mundo dos outros.
Eu sou Rosalina e sou invencível.
Não visto casaco que não há constipação que me afecte. Não me penteio porque o vento se ocupará disso – e uso o cabelo curto. Não me desvio dos transeuntes – eles que o façam. Falo alto pois não tenho o que temer. Como o que quero, pois não há caloria que me vença. Gasto o que desejo. Rio do que me apetece. Vivo para mim.
E não ponho o cinto de segurança porque não há nada que se coloque no meu caminho. Pois, não costumo conduzir, se bem hoje sinto-me de cabeça perdida.
Neste dia tudo estava a correr na perfeição até dar de caras com uma brigada de trânsito. Eram três polícias, dois de meia-idade e um mais novo. O último mandou-me parar, cheio de autoridade, quase se colocando no meio da estrada. Os pneus chiaram e por pouco não passei por cima dele. Imaginei que se quisesse exibir perante os oficiais mais velhos.
Falhados!
Parei alguns metros à frente e meti o cinto. Dois deles aproximaram-se e pediram-me a documentação. Eu dei-a, obedientemente. Fizeram uma série de questões e inspeccionaram o que tinham de inspeccionar. Eu permiti.
Depois, o homem que me mandara parar disse-me que eu vinha sem cinto de segurança. Perguntei se era doido, que podia olhar para mim e conferir. Ele encarou-me seriamente e questionou-me se eu me opunha à sua afirmação. Hesitei. Na verdade sempre me opus à opinião acusatória dos defensores da Lei. Afinal esse era o meu trabalho, logo não constituía qualquer novidade para mim.
Eles olhavam-me enquanto aguardavam a minha resposta. Eu fechei os olhos e inspirei fundo. Revivi o meu mestre e abri a boca:
O que o senhor agente possa ter visto talvez tenha uma interpretação. No entanto a realidade pode ser outra que não a que o senhor defende. A subjectividade daquilo que enfrentamos impede-nos de proferir verdades absolutas. Para além disso, sendo eu mulher, o senhor agente podia estar distraído com outros atributos que não estejam relacionados com a colocação do cinto de segurança. Não seria a primeira vez que uma ilusão interferiria na conclusão de determinada situação. Não obstante eu tenho o cinto posto. Posso afirmá-lo com todas as forças. O resto serão narrativas e embustes, que podem vir da esquerda ou da direita. Mas não passarão disso. E se o senhor agente não acreditar, eu farei com que acredite. Estou inocente da sua acusação porque eu cumpro a Lei. Sempre o fiz. Portanto não posso ser acusada do que quer que seja.
Calei-me, ofegante. Os homens fizeram caretas estranhas e olharam um para o outro antes de se dirigirem a mim. Por fim mandaram-me prosseguir. E assim que os perdi de vista, voltei a tirar o cinto e agradeci ao meu mecenas, antigo primeiro-ministro, por me ensinar a superar as adversidades.
Afinal ele é mesmo bom, e eu sou quase tanto quanto ele. Pergunto-me quantas laranjas terá esmagado para atingir tal estado de perfeição.




8 comentários:

Helena disse...

Eu não poderia ter escrito tal, visto que me recusei a ver (também já não vejo praticamente televisão) o tal senhor que contribuiu para levar o meu país ao fundo e despudoradamente e impunemente regressa a uma televisão pública(?). Acho que até o Pinóquino se ofenderá a ser comparado com ele (tenho ali um em cima, já vou conferenciar e interrogá-lo).
Que se pode dizer? Somos uma república das bananas, mais vale parecer do que ser, o chico esperto salva-se sempre, estuda em Paris, veste-se em Nova Iorque e...
Peço desculpa pelo desabafo, pago todos os impostos, nego-me a fugir ao fisco, devo contribuir para que os que foram menos bafejados do que eu possam (pudessem) ir ao médico ou tenham (tivessem) possibilidade de ter pão todos os dias na mesa e tenho vergonha de quem não tem um pingo de dignidade.

Cristina Torrão disse...

Brilhante!
Esta é uma das melhores crónicas desta série. Divertiu-me e cativou-me. Parabéns.

Vasco disse...

As crónicas são um desabafo permanente, por isso à vontade Helena!

Obrigado, Cristina. Fico muito satisfeito pelo comentário (um pouqinho mais por ser de quem vem).

Fernanda R-Mesquita disse...

eheh, penso que ninguem descreveria melhor as narrativas e os embustes da rosalinsa. perfeito, mas ela e muitos espertalhoes que andam por ai, tem um calcanhar de aquiles...esquecem a inteligencia dos outros. ate a proxima!!!

Paula disse...

Adorei! Continua porque estas crónicas já são um vício!! E que vício bom!!

Cristina Torrão disse...

Vasco, como prometido no blogue Em 2711, passo por aqui para dar os links da divulgação no meu Andanças. Permiti-me uma brincadeira, a 1 de Abril:

http://andancasmedievais.blogspot.de/2013/04/mentira-dois-em-um.html

E a solução, no dia seguinte:

http://andancasmedievais.blogspot.de/2013/04/solucao-da-charada-do-dia-das-mentiras.html

Cá ficamos à espera da próxima crónica ;)

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Gostei de ler esta crónica...bem verdadeira, infelizmente temos que aguentar tudo.

Um beijinho e parabéns

Vasco disse...

Ahahah, uma partida, a ver se alguém acreditava que gosta do senhor em questão... :)

Obrigado Rosa Maria.