CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
GRAÇA
– PARTE II
(Nota: qualquer semelhança entre o conteúdo deste texto e a realidade continua a ser, logicamente, pura coincidência)
Olá,
meu povo, meus eleitores, minha gente! Como estão? Vai um livrinho
de Matemática para o 4º ano? Ou talvez uma sebenta daquelas que já
não se usam? Um lápis e uma caneta? Ah, esperam lá! A campanha
eleitoral já acabou. Esqueçam. Deixem-me enfiar tudo na mala que
pode fazer falta no futuro - agora entendo a verdadeira razão pela
qual nós, mulheres modernas, usamos um tipo de mala onde cabe
material agrícola suficiente para tratar 10 hectares de terreno
fértil.
Sabem,
hoje vou na terceira semana de mandato. Isto tem sido uma correria.
Nem imaginam! Ainda dizem que os políticos não fazem nada!
Ora
vejamos. Despedi pessoal porque os incompetentes do governo anterior
tinham gente a mais. Contratei pessoal porque gente com cargos
influentes como eu tem de possuir um staff
que o deixe confortável em termos psíquicos e emocionais, pessoas
de confiança, claro. Quebrei contratos leasing
pois as viaturas eram alemãs e eu nunca gostei do Schumacher; sempre
preferi o Senna e mais tarde o Montoya. Comprei uma frota de carros
franceses pois sempre admirei o Alain Delon. Remodelei o gabinete,
porque o anterior era muito pesado e eu fico com enxaquecas em
ambientes adversos. Doei o material de escritório e os consumíveis
visto que os homens encarregues de carregar e descarregar objectos
pesados andavam todos a fumar em demasia quando deviam estar ocupados
a trabalhar. Fiz uma encomenda para substituir o que havia sido
doado. Enviei e-mails
a mostrar quem é que mandava no show,
como dizem os americanos - já sei que me referi a eles da outra vez,
mas que querem?, eles são os maiores. Mudei de serviço de catering
para outro mais caro,
mas de qualidade superior e que a longo prazo nos trará
rentabilidade dado que o filho do dono da empresa é namorado do
sobrinho do presidente de Angola.
Depois
deu-se o fim de semana. Fui a três festas, uma num submarino, outra
numa faculdade privada e, por último e porventura a melhor, na sede
de um banco recentemente privatizado. Foi tudo muito divertido. As
primeiras festas foram quase banais. Mas a última rebentou com a
minha escala pessoal designada de 'quão boa pode ser uma festa sem
que haja sexo, banhos de leite, esculturas de gelo e água que saia
de torneiras feitas em ouro maciço'. Nessa festa portanto, ocorrida
no domingo ao final da tarde, houve bebida, comida e música. Tudo
emanava classe, sofisticação e charme. Mais tarde chegou a cocaína
e outros compostos químicos. E, só depois, apareceram os
rinocerontes zebrados, as medusas flutuantes, as bandeiras
esvoaçantes, as naves voadoras que se assemelhavam a queques de
laranja - digo de laranja porque cheiravam a laranja -, os
alienígenas em forma de parafuso, a neve cor-de-rosa, as cadeiras
falantes que mais pareciam escadas, o fio de pesca preso nas colunas
e paralelo ao chão que nos fazia tropeçar, o pavimento flutuante,
as paredes cheias de espigões que encolhiam de cada vez que eu
espirrava, as pantufas esponjosas, os pratos de sopa sem fundo.
Foi
o máximo! Nem em Hollywood eu conseguiria encontrar tanta qualidade
numa festa.
Curiosamente,
nessa mesma celebração, eu fiz grandes negócios. Sim, porque um
político não se cansa de trabalhar! Fá-lo a toda a hora! Até a
dormir! Por isso fechei negócio com um chinês que me permitiu
contratar dez dos seus melhores professores para as minhas
universidades e enviar onze dos nossos melhores alunos para as suas
faculdades privadas. Concordei com um empreiteiro a substituição
dos telhados das nossas escolas que fossem planos, por outros
inclinados, visto que me tinha chegado aos ouvidos - lá está,
ministra com informação privilegiada - que ia chover muito.
Combinei com o primeirinho ministrinho que o governo ofereceria
livros gratuitos a agregados familiares com uma destas duas
situações: a pais que tivessem mais de doze filhos, sendo que a
mãe teria de possuir apenas uma perna e o pai ter removido o
apêndice até 1983, e a pais que tivessem tirado a carta de condução
na 'Sempre a abrir' - empresa criada pelo irmão do primeirinho
ministrinho. Também acordei com o antigo chefe do sindicato fazer a
vida negra ao novo chefe do sindicato, porque este último se tinha
feito à secretária do primeiro; e eu gosto de respeito, além de
que o antigo chefe me prometeu contar segredos obscuros acerca do
novo chefe e, palavra puxa palavra, acabei por lhe prometer que me
fazia a ele numa outra festa, quando o efeito da cocaína estivesse
no auge.
Na
semana seguinte continuei o meu percurso. Renovei a roupa e adereços
porque a imagem é fundamental. Assinei uma série de despachos - o
que não deu muito trabalho porque me tinha esquecido dos óculos de
ver ao perto em casa. E visitei duas escolas. Na primeira os
professores estavam em greve. Na segunda os alunos simulavam um
enterro. Bem, eu nunca gostei de funerais, ao contrário da minha
querida amiga Rosalina, por isso tudo decorreu num instante.
No
fim de semana seguinte descansei.
E
hoje inicio a minha terceira semana de trabalhos. São 9H e acaba de
tocar a campainha do Parlamento.
1 comentários:
Isto é um autêntico retrato da nossa "nova" sociedade...
Mas entrou às 9h no Parlamento...quem diria!Estou a gramar à brava a Sra. Dra. Ministra etc. e tal D.Graça.
Fartei-me de rir!Só as Crónicas para nos fazerem esquecer por momentos em que país vivemos.
Obrigada,Vasco.
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