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30/01/2014

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS





CARDOSO – PARTE X


Quando cheguei ao meu lar, após a visita dos polícias, dei uma vista de olhos pela televisão. E, por milagre de Deus, estava a dar uma série que era mesmo aquilo que eu precisava de ver.
Era sobre um padre assassino! Vejam só! Um padre assassino! O padre era protagonizado por um gajo louro e de bom aspecto. Possuía um nome esquisito mas já tinha sido o Jack Bauer, logo tinha de ser duro.
E em que consistia essa série? O padre queria matar um gajo que se tinha confessado, e que por acaso tinha uma ligação com ele, tendo conduzido o padre ao infortúnio. Enquanto o pobre coitado se confessava, esperando pelo perdão, o padre saca de uma arma e diz “sabes quem sou?” E PUM PUM PUM. Mata o gajo! Quer dizer, não foi assim tão sórdido e repentino, mas contado desta forma tem mais emoção. E na verdade o assassino é que matava o padre, mas cada um vê as coisas à sua maneira, certo?
Que mensagem de Deus era esta? Bem, eu tinha de me redimir antes de ser preso.
Nem dormi nessa noite. A manhã veio e cancelei a missa das 11H00. Coloquei um cartaz onde se podia ler: “Hoje só aceito confissões.”
E aguardei no confessionário - o da igreja, não o da TVI.
O primeiro paroquiano entrou.
“Como te chamas?”
“Jaime.”
“Jaime, meu filho, que merda fizeste tu para estares aqui a lamentares-te?”
“Tentei matar o meu melhor amigo.”
“Foda-se que és rijo.”
“Vim da Biquinha.”
“Ok. Estás absolvido. Põe-te a andar que está alguém à espera.”
“Xau aí, padreco.”
“Espera. Antes de saíres deixa aí a tua morada.”
“Para quê?”
“Vou vender umas rifas e o prémio sairá a uma das pessoas que se confessar hoje.”
“Fixe, mete aí a morada da minha sogra também, assim tenho mais hipóteses de ganhar.”
Ele saiu, outra se sentou. Soube que era uma mulher pelo barulho dos sapatos de salto alto.
“Como te chamas, minha filha?”
“Rosalina.”
“Rosalina... Conhecia uma Rosalina da net, era bem boa, tinha uma anca de fazer ganir. Fantasiei com ela durante meses.”
“Ó senhor padre, se quiser faço-lhe uma lap dance só para si, ali no altar.”
“Você é essa Rosalina?”
“Nem mais e esse é o meu pecado. Quero mudar de vida, mas antes, se quiser, faço um show só para si.”
“Agora não dá que tenho gente à minha espera. Estás absolvida, sua tola. Tenho pena que deixes essa vida. Deixa aí a tua morada num papel para que Deus te possa visitar.”
“Obrigada, senhor padre.”
Ela saiu e outro entrou.
“Como te chamas, meu filho?”
“Moustafa. E também Maria e Bruno.”
“Que puto de nome é esse? És iraniano? Tens armas químicas no bolso, seu adorador do Sadam?”
“Sou português, mudei de nome.”
“Então és burro que nem um cepo. E porque não vens sozinho?”
“A Maria e o Bruno estão sempre comigo.”
“Quais são os teus pecados, Abdul?”
“Moustafa.”
“Isso.”
“Todo eu sou um pecado. A Maria e o Bruno não têm pecados.”
“Então eles que continuem a levar contigo porque a vida é equilíbrio mesmo.”
“Estou perdoado?”
“Desde que não me estejas a enganar e não idolatres o Alá. É que ele e Deus não se curtem muito.”
“Juro que só tenho olhos para Deus.”
“Então põe-te a andar e deixa a morada, Ahmed.”
“Moustafa.”
“Isso.”
“A minha, a da Maria ou a do Bruno?”
“A tua, parvalhão. Eles não pecaram.”
“Posso perguntar para quê?”
“Queres que te pergunte por todos os teus pecados?”
“Não.”
“Então escreve a morada e deixa à porta do confessionário.”
Moustafa saiu e novos tacões se fizeram escutar.
“Quem és tu?”
“Oi, eu sou a Graça, cara. Tudo jóia?”
“Foda-se, és brasileira? Isto aqui não é o reino de Deus. Põe-te a andar.”
“Ah, sou portuguesa. Vê o meu sotaque, agora? Estava a disfarçar. É a força do hábito, andavam à minha procura no Brasil, para além disso quando converso com sotaque brasileiro os gajos olham para mim de uma forma mais intensa.”
“Quero lá saber da puta da tua vida! Não te calas?”
“Fui política, é a força do hábito.”
“Política? Podes ir, já percebi quais os teus pecados. E deixa aí uns euritos pelo dinheiro que me roubaste através dos impostos.”
“Obrigado, senhor padre.”
“E escreve a morada numa das notas.”
“Para quê?”
“Ouvi dizer que o presidente da câmara vai ser preso. Alguém tem de substitui-lo.”
“Ah, ok.”
“Adeusinho.”
Ela saiu e outro sentou-se no lugar.
“Bom dia, padre.”
“Jeremias?”
“Ó padre Cardoso! Há quanto tempo?”
“Porque estás aqui, seu caralho?”
“Para me confessar. E ali atrás, na fila, está também a Carolina, aquela gaja boazuda com que me fizeste perder a virgindade.”
“Bons velhos tempos. Que pena não poder experimentá-los de novo. Agora vão fazer-me a cama...”
“Vão? Porquê?”
“Esquece. Quais os teus pecados, Jeremias?”
“Quais não são os meus pecados?”
“Tens razão. Estás perdoado. Voltaste à casa que herdaste da tua mãezinha?”
“Sim. Ficarei por cá durante uns dias.”
“Ok. Baza.”
“Xau aí, Cardoso Tenebroso.”
“Até à vista, Jeremias Enguias.”
“Não curto essas bocas.”
“Deus não gozará contigo. Faz-te à vida para que eu possa receber o próximo pecador.”
O Jeremias saiu e ouvi a porta bater, embora não me tivesse apercebido de qualquer sombra.
“Quem está aí?”
“A Madalena.”
“A arrependida?”
“Não, essa já morreu há que séculos, senhor padre.”
“A julgar pela tua voz, pareces novinha.”
“Tenho dez anos.”
“E já tens pecados?”
Preparei-me para escutar a sua voz, mas senti uma dor aguda no peito. Era muito forte e paralisou-me por completo. Ainda assim, levei a mão àquela zona e só quando escorregava do banco percebi que estava a ter um ataque cardíaco. Senti que perdia a consciência. No entanto, era capaz de ouvir risadinhas infantis do lado de lá do confessionário. Sabia que tinha poucos minutos de vida, por isso decidi agir.
“Madalena?”
“Sim?”
“Tenho uma missão para ti.”
“Não posso, tenho escola.”
“Devem estar aí uns papéis com umas moradas.”
“Já disse que tenho escola.”
“Suplico-te. Consegues ver?”
“Sim.”
“Tens de matar as pessoas que moram nesses locais. Jaime, Rosalina, Moustafa, Graça e Jeremias.”
“Matar?”
“Sim, tens de terminar a minha obra. Agora que vou morrer não conseguirei levar a minha tarefa avante.”
“Matar como no Emily Grace?”
“No quem?”
“Aquele jogo de computador no qual enfiamos balázios na malta.”
“Suponho que sim.”
“Altamente! Conte comigo, senhor padre.”
Nessa altura senti frio e a visão turva. Deixei de escutar e de sentir o chão que me sustinha. Ainda assim, mesmo antes de morrer, percebi que a Madalena me tentava furar os olhos com uma escovinha destinada a limpar a sujidade entre as gengivas, os dentes e o aparelho dos dentes.
E sucumbi de vez, felizmente sem ter sentido a escova a perfurar-me.



12/09/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
 
GRAÇA – PARTE X

(Nota: qualquer semelhança entre o conteúdo deste texto e a realidade é, claro, pura coincidência)
 
Um horror! É o que tenho dizer, meus caros. Um autêntico horror.
Tudo começou quando eu saía de uma escola profissional de onde se formam excelentes carpinteiros. Não são uns carpinteiros quaisquer! São profissionais letrados. Daqueles que sabem construir uma frase com mais de cinco palavras e têm consciência de que Dan Brown é um escritor americano.
Eu tinha lá ido porque tinha descoberto com alguma antecedência que haveria uma reportagem de um canal televisivo importante acerca de tão bem-sucedida escola. Por isso, mexi uns cordelinhos e fiz coincidir a minha visita com a dos jornalistas. Até esbocei um ar surpreso e tudo quando me cruzei com as câmaras, embora tenha tropeçado num fio de uma delas e estatelado no chão, com direito a risos entredentes e a um valente lanho no queixo - felizmente disfarçável perante as gravações.
Enquanto os jornalistas faziam o trabalho deles eu fingia que fazia o meu. Visitava as salas, falava com as pessoas sem, contudo, as escutar e andava de um lado para o outro.
Até que as câmaras se voltaram para mim. Assim, baixei ligeiramente o queixo - para não se notar o lanho - e esbanjei mil sorrisos enquanto me filmavam, como se tudo fosse óptimo e a felicidade dos telespectadores que mais tarde assistissem ao meu discurso fosse directamente proporcional ao optimismo por mim decretado.
Expliquei, portanto, que tudo estava a melhorar com as novas medidas adoptadas. A jornalista - uma meia-leca que parecia não ter mais do que 15 anos - questionou-me acerca de que medida eu me referia, sendo que ela não se recordava de nenhuma por mim tomada. Eu respondi que ela devia ter lapsos de memória e que talvez fosse melhor tomar vitaminas - assim também ajudaria no seu crescimento, embora me tenha abstido deste comentário -, porque eu já era responsável por imensas iniciativas que apelariam à mudança. Ia enumerar, mas depois contive-me e aleguei que a lista era tão vasta que nunca sairíamos daquele ponto, havendo tanto por dizer. Depois expus quão risonho seria o futuro e quão brilhantes seriam os nossos alunos. Ela inquiriu se eu acreditava mesmo nisso e eu acenei afirmativamente. Em seguida ela fulminou-me com o olhar. Tive a certeza que ia lançar uma daquelas questões que nos deixam a nós, políticos, sem fala e, muitas vezes, sem ar. E preparava-me para simular um ataque cardíaco ou uma lesão na coxa quando pareceu mudar de ideias.
Em seguida lá foi à sua vida e eu à minha.
E foi aí que o pesadelo começou.
Saía eu com o meu staff quando tudo começou a correr mal. E o staff não era pequeno. Tratava-se dos seguintes elementos: assessor 1, assessora 2 - para o caso de o primeiro ter de ir à casa de banho -, assessor 3 - para o caso de o primeiro estar na sanita por mais de 5 minutos e de o segundo estar ao telemóvel -, motorista 1, motorista 2 - para o caso de o outro ter sono -, informático, cozinheiro, modista, maquilhadora, personal trainer, nutricionista, personal clown - fui eu que inventei este cargo para me compensar dos insultos do povo -, empregada, consultor, artista plástico - nunca se sabe quando fazemos uma expressão daquelas que ficam para a história e que necessite de ser registada para a eternidade - e enóloga. Vai daí, quando pus os pés no passeio, senti um valente safanão e, de repente, deixei de conseguir ver o que quer que fosse.
Senti-me sendo arrastada pela calçada, por entre gritos desesperados dos meus colaboradores que pareciam incapazes de contrariar os acontecimentos. Depois enfiaram-me num espaço fechado e escutei uma porta a bater.
E concluí: 'raios, meteram-me numa carrinha, estou a ser raptada!'
Claro que fiquei chateada comigo mesma, mas principalmente com a sociedade por exigir tanto de mim, pois se não tivesse de ser tão perfeita e competente, caberia no meu staff um par de seguranças.
Fui levada em agonia, deitada no chão duro de uma carrinha daquelas que andam nas feiras.
Por entre curvas apertadas e guinadas valentes, a carrinha lá acabou por ser imobilizada. Depois fui levada para dentro de um armazém, daqueles com portões de vários metros e frios como tudo - iguaizinhos aos que a malta usa para guardar o material roubado que mais tarde, quando a mama se acaba, se vende ao desbarato. Percebi que me removiam o pano preto que me havia privado de ver enquanto me atavam as mãos e os pés.
Quando me adaptei à claridade fiquei estupefacta! Tinham sido os membros da equipa de reportagem que me haviam raptado.
Perguntei a razão e eles riram.
Disseram que seriam considerados heróis nacionais ao serem responsáveis pelo meu sofrimento. Eu abanei a cabeça em tom de reprovação. Via-se mesmo que aquela gente não havia recebido uma boa educação. Malditos ex-ministros!
No entanto nem tudo correu mal. Mas essa história fica para a próxima, fica para o próximo e último episódio.


25/04/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


ROSALINA – PARTE X


Andei semanas à espera que o telemóvel tocasse. Semanas, sabem o que são semanas? Claro que sabem. Perdoem-me as minhas maneiras. Geralmente não costumo ser tão clara a fazer das pessoas burras, mas tenho andado nervosa ultimamente.
Eis então que o telemóvel tocou. Como não conhecia o número que me tentava contactar, o meu coração começou a bater mais rápido que há um minuto atrás. Tremi quando premi a tecla verde e, por fim, perguntei quem era. E era ele: o chefe de serviço dos correios, 'el jefe'. Dei-me por contente por estar sentada na sanita, caso contrário temo que as pernas cedessem ao escutar aquela voz de ouro, translúcida como a água de uma nascente, quente como o interior de um vulcão e... meio fanhosa?
Raios!
O gajo era meio fanhoso e eu não tinha dado por isso – pudera, com aquelas condições miseráveis na estação dos correios uma pessoa não ouve nada!
Bem, não importa. Quero-o a grunhir, não a falar. Para falar tenho o meu marido, embora pouco de jeito diga.
Como ele tinha previsto, dois dos envelopes contendo folhas em branco tinham vindo para trás. Combinámos, por isso, que eu fosse ter com ele à estação pelas 19H.
Antes da hora marcada, arranjei-me, perfumei-me e treinei beijos nas costas da mão e olhares sedutores em frente ao espelho do quarto. Disse à família que iria ter com a vereadora da câmara para uma reunião de cremes feitos à base de baba de caracol e chamei um táxi.
Quando cheguei aos correios a porta estava trancada, pelo que bati nela com alguma força. E então ele apareceu, montando um cavalo imaginário – não tinha um porte nobre, simplesmente caminhava de pernas afastadas – e sorrindo na minha direcção.
Abriu a porta e puxou-me para dentro. Disse-me boa noite e eu confirmei o seu problema de dicção – Merda!
Fomos para o gabinete privado, que tinha uma fragrância espantosa e velas lilases e vermelhas espalhadas pelo chão, e ele deu-me os envelopes. Encarei-o com um olhar de leoa e arranquei-lhe os envelopes das mãos. Rasguei-os e deixei-os cair junto ao meu corpo. Então puxei-o pelos cabelos e beijei-o. Só acertámos o beijo à quarta tentativa. Das duas primeiras ocasiões senti-me um peixe ao abrir demasiado a boca, depois ele enfiou um dente noutro que era meu.
Estávamos a escaldar. Rosalina Branco estava on fire, algo que não acontecia desde que vi um homem que defendi em tribunal, chamado Jaime. Arrancámos a roupa um do outro e, curiosamente, a certa altura, ele pediu-me que posasse nua em frente a ele. Dizia 'el jefe' que me queria fotografar na sua cabeça. Eu acedi. Só depois me atirei a ele, faminta de carinho e daquelas mãos que não eram muito grandes, mas que serviam para o propósito.
E depois tudo arrefeceu. Ele não conseguiu... vocês sabem... Eu tentei, juro que sim. Então 'el jefe' passou a 'el perezoso' na minha cabeça e eu passei-me. Claro que me passei. Não se leva uma mulher a Paris sem se lhe mostrar a Torre Eiffel.
Gritei com eles – sim, eles – e gesticulei tanto quanto pude. Revoltei-me e armei um escândalo. Se fosse hoje não o teria feito porque no meio do aparato a polícia apareceu.
Eu levei um raspanete e ele foi despedido.
Uma tristeza pensam vocês, não é?
Pois nem imaginam a minha cara de tacho quando vi o que vi. Só então entendi que a sua fotografia afinal não era apenas mental, pois devia ter uma máquina escondida algures. E desesperei quando esta foto apareceu espalhada pela internet. Imaginam o que é? Deduzo que tenha sido uma vingança por ter provocado o seu despedimento.
Só então fiquei a saber que o nome de 'el perezoso' era Moustafa.
Raios!
Quem neste país se chama Moustafa?
Vá lá, ao menos toda a gente pode constatar quão boa sou, e nem apanharam o meu melhor lado. Preciso mesmo de comprar umas laranjas para me recompor.