03/10/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JEREMIAS – PARTE III


Como antes evidenciei, já fui super-herói em part-time. Foi até uma das profissões que antecedeu a minha carreira de actor. Nessa altura eu estava aflito de dinheiro, porque tinha de pagar ao Estado os IRS's em falta.
Era também, para além de super-herói, repositor da Matutano e futebolista da terceira divisão. Não me apetece falar da parte de ser repositor porque durante os meses em que trabalhei para essa empresa engordei outros tantos quilos, nem da minha também curta carreira de futebolista uma vez que tive uma lesão na cara que me impediu de ser um jogador de alto gabarito mundial. Bem, para ser sincero a lesão na cara não ocorreu no relvado, mas fora dele, e nem foi a lesão em si que me impediu de prosseguir. Lesionei-me porque o guarda-redes da equipa me apanhou a fazer-me à gaja dele e desfez-me um lado da cara, pelo que não voltei a treinar para não me desfazer o outro que se mantinha intacto. Felizmente recuperei num par de semanas.
Mas quando mantinha os três trabalhos em simultâneo era muito complicado. Tanto que nem dava para comer gajas, excepto a minha vizinha que era responsável pelo condomínio, a dona pantufas, como era conhecida - não que andasse sempre de pantufas mas pelo facto de todos os homens do prédio conhecerem as suas pantufas.
Ora vejamos, repunha durante a semana das 8h00 às 17h00. Tinha treinos às segundas, quintas e sextas das 21h00 às 22h30 e jogos aos domingos às 15h00. Precisava sempre do sono em dia para poder ser super-herói. Sendo que aos sábados folgava e aos domingos de manhã não falhava uma missa, eu era super-herói das 18h30 às 22h00, com pausa de uma hora para o jantar, às terças e quartas e aos domingos das 19h00 até às 20h00 quando jogávamos em casa, pois quando íamos jogar fora não dava para efectuar salvamentos.
Assim, não tinha muito tempo disponível para ser super-herói. No entanto fazia os possíveis. Cobrava ao minuto, como os camionistas cobram ao quilómetro. Tinha um site na net e tudo, assim como um número nas listas telefónicas. Era uma espécie de empresa unipessoal. Chamava-se “Pau para toda a obra”. Ainda tive uns contactos de gajos e gajas a perguntar quanto levava por uma massagem, mas logo lhes fazia ver que tipo de negócio era o meu. Mesmo assim, quando o assunto se tratava de calor a mais ainda apaguei alguns fogos.
Enquanto me dediquei de corpo e alma a essa profissão - mais de corpo porque ser super-herói não exige grandes miolos - fui imensamente feliz. Senti-me bem enquanto membro da sociedade e as pessoas tratavam-me com respeito. Ainda hoje me recordo dos títulos dos jornais, “super-herói distorce lençóis encharcados de velhinha com problemas respiratórios”, ou “homem mistério ajuda anão a carregar no botão do sétimo andar do elevador para que pudesse chegar ao consultório médico”, ou “super-herói ata os cordões das sapatilhas de bebé”. Houve muitas mais manchetes. Nisto estou grato aos media, que com tanta notícia para destacar deram ênfase aos meus feitos. Sonho até ser jornalista um dia e quem sabe não conseguirei?
No entanto, a minha salvação favorita foi quando impedi que uma árvore tivesse caído em cima de um mar de gente. Aconteceu num dia de tempestade e os relâmpagos eram às dezenas. Toda a gente dizia que se houvessem árvores naquela praça da cidade que cairiam em cima do povo. Eu tinha-as cortado com uma moto-serra na semana anterior para não ter de salvar os gatos que nelas trepavam, pois já havia sido chamado para três serviços e ainda não mos tinham pago. Salvei assim as pessoas das quedas das árvores, ainda que por antecipação. Isto porque havia um concerto da Ana Malhoa e, apesar da chuva imensa e dos trovões furiosos, ninguém arredava pé do local.
Depois também houve uma semana em que fui chamado para a Rússia para fazer um rescue - era assim que eu chamava ao serviço, pois fazia-me sentir como o Kevin Costner. Ocorreu em Moscovo. Pairava uma dúvida no ar nos membros do parlamento moscovita. Havia uma gaja que era muito boa. Não era uma gaja qualquer, mas sim uma gaja-gaja. Era assessora de imprensa. Mas o pessoal de lá achava que ela tinha uma voz muito grossa. Diziam eles que se encontrava possuída pelo Demo. Queriam por isso que eu a salvasse das trevas. Perguntei-lhes por que se ralavam, ao que me responderam que a gaja era boa demais para ser devorada por um gajo com cornos na cabeça e pés de bode, que no mínimo um deles se deveria encarregar da tarefa pessoalmente. Vi uma foto e não pude deixar de concordar. Em seguida questionei porque me tinham contactado. Eles riram e explicaram que tinha sido o único a aceitar o desafio.
O resto foi rápido. Conheci-a no bar de um hotel. Obviamente ela não resistiu aos meus encantos, afinal um português é sempre um português esteja onde estiver. Bebemos vodka e logo entendi que à medida que emborcava cada vez falava mais grosso. Cheguei à conclusão que era devido à bebida que falava assim, que afinal o diabo não a havia possuído. Mas, falando em possuir, eu tinha de fazer algo mais, apesar de já ter encontrado o motivo. Se estivesse no meu estado normal teria saído dali e dado o meu relatório aos russos do parlamento. Todavia a vodka havia-me dominado.
Subimos para o quarto e despimo-nos. Depois apercebi-me do meu terrível erro. Tentei fugir mas levei com o gargalo de uma garrafa nos dentes. Perdi as forças e também o canino direito. Enquanto fui dominado jurei que aquele seria o último rescue da minha vida.
No dia seguinte, antes de regressar, disse aos russos que o tom grave da sua voz não se devia a Satanás, mas sim, em parte, à quantidade de vodka que ingeria e, fundamentalmente, ao facto de a gaja não ser, afinal, uma gaja.


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3 comentários:

Anónimo disse...

Wow..! Muito bom !

Anónimo disse...

Wow..! Muito bom !

Vasco disse...

:) Obrigado.