CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JEREMIAS
– PARTE III
Como
antes evidenciei, já fui super-herói em part-time.
Foi até uma das profissões que antecedeu a minha carreira de actor.
Nessa altura eu estava aflito de dinheiro, porque tinha de pagar ao
Estado os IRS's em falta.
Era também, para além de
super-herói, repositor da Matutano e futebolista da terceira
divisão. Não me apetece falar da parte de ser repositor porque
durante os meses em que trabalhei para essa empresa engordei outros
tantos quilos, nem da minha também curta carreira de futebolista uma
vez que tive uma lesão na cara que me impediu de ser um jogador de
alto gabarito mundial. Bem, para ser sincero a lesão na cara não
ocorreu no relvado, mas fora dele, e nem foi a lesão em si que me
impediu de prosseguir. Lesionei-me porque o guarda-redes da equipa me
apanhou a fazer-me à gaja dele e desfez-me um lado da cara, pelo que
não voltei a treinar para não me desfazer o outro que se mantinha
intacto. Felizmente recuperei num par de semanas.
Mas quando mantinha os três
trabalhos em simultâneo era muito complicado. Tanto que nem dava
para comer gajas, excepto a minha vizinha que era responsável pelo
condomínio, a dona pantufas, como era conhecida - não que andasse
sempre de pantufas mas pelo facto de todos os homens do prédio
conhecerem as suas pantufas.
Ora vejamos, repunha durante a
semana das 8h00 às 17h00. Tinha treinos às segundas, quintas e
sextas das 21h00 às 22h30 e jogos aos domingos às 15h00. Precisava
sempre do sono em dia para poder ser super-herói. Sendo que aos
sábados folgava e aos domingos de manhã não falhava uma missa, eu
era super-herói das 18h30 às 22h00, com pausa de uma hora para o
jantar, às terças e quartas e aos domingos das 19h00 até às 20h00
quando jogávamos em casa, pois quando íamos jogar fora não dava
para efectuar salvamentos.
Assim, não tinha muito tempo
disponível para ser super-herói. No entanto fazia os possíveis.
Cobrava ao minuto, como os camionistas cobram ao quilómetro. Tinha
um site na net e tudo, assim como um número nas listas telefónicas.
Era uma espécie de empresa unipessoal. Chamava-se “Pau para toda a
obra”. Ainda tive uns contactos de gajos e gajas a perguntar quanto
levava por uma massagem, mas logo lhes fazia ver que tipo de negócio
era o meu. Mesmo assim, quando o assunto se tratava de calor a mais
ainda apaguei alguns fogos.
Enquanto
me dediquei de corpo e alma a essa profissão - mais de corpo porque
ser super-herói não exige grandes miolos - fui imensamente feliz.
Senti-me bem enquanto membro da sociedade e as pessoas tratavam-me
com respeito. Ainda hoje me recordo dos títulos dos jornais,
“super-herói distorce lençóis encharcados de velhinha com
problemas respiratórios”, ou “homem mistério ajuda anão a
carregar no botão do sétimo andar do elevador para que pudesse
chegar ao consultório médico”, ou “super-herói ata os cordões
das sapatilhas de bebé”. Houve muitas mais manchetes. Nisto estou
grato aos media,
que com tanta notícia para destacar deram ênfase aos meus feitos.
Sonho até ser jornalista um dia e quem sabe não conseguirei?
No entanto, a minha salvação
favorita foi quando impedi que uma árvore tivesse caído em cima de
um mar de gente. Aconteceu num dia de tempestade e os relâmpagos
eram às dezenas. Toda a gente dizia que se houvessem árvores
naquela praça da cidade que cairiam em cima do povo. Eu tinha-as
cortado com uma moto-serra na semana anterior para não ter de salvar
os gatos que nelas trepavam, pois já havia sido chamado para três
serviços e ainda não mos tinham pago. Salvei assim as pessoas das
quedas das árvores, ainda que por antecipação. Isto porque havia
um concerto da Ana Malhoa e, apesar da chuva imensa e dos trovões
furiosos, ninguém arredava pé do local.
Depois
também houve uma semana em que fui chamado para a Rússia para fazer
um rescue - era
assim que eu chamava ao serviço, pois fazia-me sentir como o Kevin
Costner. Ocorreu em Moscovo. Pairava uma dúvida no ar nos membros do
parlamento moscovita. Havia uma gaja que era muito boa. Não era uma
gaja qualquer, mas sim uma gaja-gaja. Era assessora de imprensa. Mas
o pessoal de lá achava que ela tinha uma voz muito grossa. Diziam
eles que se encontrava possuída pelo Demo. Queriam por isso que eu a
salvasse das trevas. Perguntei-lhes por que se ralavam, ao que me
responderam que a gaja era boa demais para ser devorada por um gajo
com cornos na cabeça e pés de bode, que no mínimo um deles se
deveria encarregar da tarefa pessoalmente. Vi uma foto e não pude
deixar de concordar. Em seguida questionei porque me tinham
contactado. Eles riram e explicaram que tinha sido o único a aceitar
o desafio.
O
resto foi rápido. Conheci-a no bar de um hotel. Obviamente ela não
resistiu aos meus encantos, afinal um português é sempre um
português esteja onde estiver. Bebemos
vodka
e logo entendi que à medida que emborcava cada vez falava mais
grosso. Cheguei à conclusão que era devido à bebida que falava
assim, que afinal o diabo não a havia possuído. Mas, falando em
possuir, eu tinha de fazer algo mais, apesar de já ter encontrado o
motivo. Se estivesse no meu estado normal teria saído dali e dado o
meu relatório aos russos do parlamento. Todavia a vodka
havia-me dominado.
Subimos
para o quarto e despimo-nos. Depois apercebi-me do meu terrível
erro. Tentei fugir mas levei com o gargalo de uma garrafa nos dentes.
Perdi as forças e também o canino direito. Enquanto fui dominado
jurei que aquele seria o último rescue
da minha vida.
No
dia seguinte, antes de regressar, disse aos russos que o tom grave da
sua voz não se devia a Satanás, mas sim, em parte, à quantidade de
vodka que
ingeria e, fundamentalmente, ao facto de a gaja não ser, afinal, uma
gaja.
3 comentários:
Wow..! Muito bom !
Wow..! Muito bom !
:) Obrigado.
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