CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
MADALENA
– PARTE III
Depois de ter deixado o ciber
café, já ele estava iluminado, desci a rua em direcção à praça
central.
Já começava a escurecer, mas
ainda assim detectei uma nuvem fofinha em forma de ursinho de
peluche, igualzinha ao meu Teddy que dorme comigo todas as noites. É
um querido, o Teddy, é cor-de-rosa e tem uns olhos pedinchões, nada
condizentes com o gancho que ele roubou ao capitão que passa a vida
a azucrinar a cabeça ao Peter Pan, nem com a perna de pau que tive
de lhe colocar quando perdeu a perna esquerda numa queda da cama. É
um bocadinho esquizofrénico, ele. Quando estou acordada é meiguinho
comigo, mas assim que adormeço farta-se de fazer asneiras. Com
jeitinho ainda vai espancar a minha mãe outra vez, agora que saí de
casa.
Ao alcançar a praça, avaliei o
espaço. Havia duas esplanadas vazias de gente. Os lampiões
iluminavam o centro que possuía uma estátua do benfeitor da região,
agora na prisão por fraude fiscal, abuso de poder, ocultação de
provas, tentativa de fuga, tentativa de homicídio e falta de
pagamento do condomínio e de dois refrigerantes no bar da câmara
municipal da capital. Não se via vivalma, à excepção de um homem
e de duas sombras.
Ele tinha um lenço envolvido na
cabeça e gritava palavras de ordem contra um poder invisível. Havia
também, num canto, três polícias que riam dele e gesticulavam na
sua direcção. Por vezes até lhe atiravam umas pedritas para
gargalharem em seguida. Contudo ele não reagia à provocação.
Nisso admirei-o. Ele parecia mesmo revoltado. Depois ia e vinha,
provocando alguém e fugindo no momento seguinte, como se esse alguém
tencionasse responder aos seus impropérios.
Depois acabei por me chegar a ele
e foquei-o, sem conseguir todavia captar as duas sombras que o
rodeavam.
“És o Moustafa, não és?”
“Sou. Quem pergunta? És da
CIA, não? Eu sabia que iam mandar um anão para me capturar!”
“Não sou anã, sou apenas uma
miúda.”
“Isso trata-se de uma inovação!
Muito bem, CIA. Um modo de operar inesperado.”
“Olha lá, contra quem te
revoltas?”
“Contra o mundo.”
“Mas não está ali ninguém.”
“Na vida aprendi que é a mesma
merda revoltarmo-nos contra ninguém ou contra toda a gente. Sou do
contra e ponto final. Para além disso, descobri que não percebo um
caralho de Geografia. E por isso fui despedido.”
“Estou a ver.”
“E agir contra ninguém é mais
seguro, ao menos não apanho bastonadas.”
“Claro. E essas sombras?”
“Não trates mal a Maria e o
Bruno, sua fedelha. Eles têm vida própria.”
“Pois.”
“Mas afinal quem és tu?”
“A morte.”
“Não és muito nova para
isso?”
“Nada disso. A morte não tem
idade.”
“Andas a ver muitos filmes.”
“Nos filmes não ensinam as
crianças a usar uma mala da Sininho como arma de estrangulamento
como vou fazer com esse teu pescoço fino e curto.”
“Estou dentro da média, sua
fedelha.”
“Sabes qual a média da
dimensão dos pescoços?”
“Ah, era do pescoço que
estavas a falar...”
“De qualquer forma estavas
dentro da média, porque em breve deixarás de existir.”
“Mas porque é que me queres
matar? Não me digas que foi o padre Cardoso que te enviou? Ele
também é da CIA, não é?”
“Enviou, de facto. Mas a minha
tia também.”
“A tua tia?”
“Sim, a Julianinha, aquela a
quem tu fazias a vida negra quando eram garotos.”
“A Julianinha? Como está ela?”
“Morreu engasgada ao comer umas
coxas de rã na rua Rivoli em Paris.”
“Rãs? Odeio rãs e sapos.”
“Eu sei.”
“Vais, portanto, matar-me por
ter feito a vida negra à tua tia?”
“Não propriamente. Antes de
morrer, ela disse-me para te procurar e para te transmitir que te
perdoava por todo o mal que lhe causaste.”
“Então porque me queres
matar?”
“Porque o meu psiquiatra diz
que eu faço tudo ao contrário. Quando me dizem um sim, eu ouço um
não.”
“E o que tem isso a ver com o
assunto?”
“Bem, eu odeio-o, por isso
amo-o. Logo não o quero desiludir. Assim, tendo assumido a minha tia
que te perdoa, o que ela quer é que te mate.”
“Não faz sentido.”
Encolhi os ombros, certa de que
nem tudo na vida fazia sentido e agarrei a alça da mala da Sininho
com ambas as mãos.
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