CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
ROSALINA
– PARTE I
Sou
boa! Sou boa! Sou boa! Sou boa! Sou boa! S-O-U B-O-A! Repito
diariamente estas palavras para mim mesma, mas só na minha cabeça.
Faço-o sempre que esmago laranjas para os meus filhos ao preparar o
pequeno-almoço. Eles insistem em beber sumo natural de laranja sete
dias por semana e não me resta outra alternativa que não
agradar-lhes. Não sei quando ganhei este vício, o de
automotivar-me, mas a verdade é que há anos que o faço. Associo a
minha vontade de ser óptima em tudo à força que exerço sobre os
frutos ao espremê-los. Faço-o porque, no fundo, tenho consciência
da minha vulnerabilidade. Por esse mesmo motivo, casei com um homem
baixo e barrigudo, de aspecto inferior ao meu; não tirei a carta de
condução para que alguém me dê boleia; não cozinho para que o
façam por mim; não assumo determinadas tarefas para que outros
respondam por elas. Ou seja, estou sempre presente sem, na verdade,
nunca estar. Colho méritos, desmarco-me de embaraços. Sou assim
porque sou boa e se não for tanto quanto desejo baixo a fasquia dos
que me rodeiam para, assim, sobressair.
E,
claro, sou uma advogada de sucesso. Vivo para a minha profissão.
Aliás, só perdi dois casos na minha vida, o primeiro e o último
que assumi. Quanto ao primeiro, ainda era verde na altura e não
sabia as artimanhas que usavam nos tribunais. A ambição cegou-me e
fiz asneira. Contudo, sou uma gaja esperta e rapidamente captei os
truques, pelo que só voltei a aceitar um caso quando já estava
preparada. O último, porém, perdi-o porque defendi uma besta, um
tal Jaime, um retardado, mas que até acabou por mexer comigo quando
exibiu toda aquela pujança e virilidade ao espancar o meu colega que
o atacava com palavras. Logicamente não podia pedir ao meu marido
que agisse com tamanha violência, afinal escolhi-o pelo facto de ser
submisso e algo fraco. Não obstante, tem um bom emprego e ganha bem
– é economista, daqueles que aperta o último botão da camisa, o
do pescoço -, por isso serve os meus interesses. Para além disso,
não me pede muitas vezes para satisfazê-lo e, quando o faz, eu
penso nos meus clientes e amigos charmosos, acabando por passar tudo
num instante.
Agora
passemos um pouco à minha rotina. Nos dias em que trabalho, costumo
ir para o meu gabinete, no qual tenho sempre dois ou três
estagiários que marram todas as leis actualizadas. Depois, por volta
do meio-dia visito um cliente qualquer que tenha uma cantina ou um
restaurante por perto para que me ofereça o almoço. Ao princípio
da tarde, faço os recados de rua, como visitar os correios e alguns
serviços administrativos, pois quando me cruzo com conhecidos, parte
deles já beberam um ou outro copo, acabando por se revelarem mais
soltos de língua quando me elogiam, aos quais eu respondo com
risinhos falsamente envergonhados, para mais tarde coçar o peito
distraidamente e deixar a minha blusa mostrar um pouco mais de mim. A
meio da tarde costumo receber visitas e clientes. Obviamente é o meu
marido quem me vai levar aos escritório e buscar, depois de
transportar os miúdos.
E sou feliz assim. Toda a gente me conhece e me reconhece mérito,
que é para o que vivo. Nas instituições bancárias tenho prioridade
de atendimento, assim como nos tribunais e noutros gabinetes
estatais. Toda a gente me chama doutora e amo isso, doutora, a boa, a
bem-sucedida.
Contudo,
ninguém sabe quais os meus pontos fracos. Eu mesma, na maioria das
vezes, esqueço-me deles. Mas eles estão sempre presentes. Ouço-os
principalmente quando me deito no silêncio da noite e agudizam-se
quando os sons desaparecem e as luzes se apagam. E aí cedo às
minhas tentações, de ser agarrada, adorada e trincada por muitos
Jaimes, os verdadeiros machos, aqueles que vivem porque têm de
viver, não porque têm algo de bom para fazer. Desejo, afinal, que
eles me tratem como um deles, como ninguém, como se eu fosse lixo e
indiferente a toda a gente.
E
no dia seguinte acordo e volto a insistir que sou boa, porque sou eu.
5 comentários:
Mais um protótipo da nossa sociedade:uma Sra. Dra. armada em boa...
Adorei!
Já comecei a odiar a narradora. Da última vez que isso me aconteceu, adorei o livro! Bom fim de semana.
...Engraçado,esta personagem faz-me lembrar alguem...veremos o k aí vem,continua miudo :)
Engraçado,esta personagem faz-me lembrar alguém...vejamos o k aí vem,continua miudo :)
Ahaha, quantas pessoas nos fazem lembrar esta personagem... o mundo esta repleto delas. Vale a pena o tempo que paro aqui. Contiuem. Vou continuar a ler.
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