28/02/2013

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


ROSALINA – PARTE I

Sou boa! Sou boa! Sou boa! Sou boa! Sou boa! S-O-U B-O-A! Repito diariamente estas palavras para mim mesma, mas só na minha cabeça. Faço-o sempre que esmago laranjas para os meus filhos ao preparar o pequeno-almoço. Eles insistem em beber sumo natural de laranja sete dias por semana e não me resta outra alternativa que não agradar-lhes. Não sei quando ganhei este vício, o de automotivar-me, mas a verdade é que há anos que o faço. Associo a minha vontade de ser óptima em tudo à força que exerço sobre os frutos ao espremê-los. Faço-o porque, no fundo, tenho consciência da minha vulnerabilidade. Por esse mesmo motivo, casei com um homem baixo e barrigudo, de aspecto inferior ao meu; não tirei a carta de condução para que alguém me dê boleia; não cozinho para que o façam por mim; não assumo determinadas tarefas para que outros respondam por elas. Ou seja, estou sempre presente sem, na verdade, nunca estar. Colho méritos, desmarco-me de embaraços. Sou assim porque sou boa e se não for tanto quanto desejo baixo a fasquia dos que me rodeiam para, assim, sobressair.
E, claro, sou uma advogada de sucesso. Vivo para a minha profissão. Aliás, só perdi dois casos na minha vida, o primeiro e o último que assumi. Quanto ao primeiro, ainda era verde na altura e não sabia as artimanhas que usavam nos tribunais. A ambição cegou-me e fiz asneira. Contudo, sou uma gaja esperta e rapidamente captei os truques, pelo que só voltei a aceitar um caso quando já estava preparada. O último, porém, perdi-o porque defendi uma besta, um tal Jaime, um retardado, mas que até acabou por mexer comigo quando exibiu toda aquela pujança e virilidade ao espancar o meu colega que o atacava com palavras. Logicamente não podia pedir ao meu marido que agisse com tamanha violência, afinal escolhi-o pelo facto de ser submisso e algo fraco. Não obstante, tem um bom emprego e ganha bem – é economista, daqueles que aperta o último botão da camisa, o do pescoço -, por isso serve os meus interesses. Para além disso, não me pede muitas vezes para satisfazê-lo e, quando o faz, eu penso nos meus clientes e amigos charmosos, acabando por passar tudo num instante.
Agora passemos um pouco à minha rotina. Nos dias em que trabalho, costumo ir para o meu gabinete, no qual tenho sempre dois ou três estagiários que marram todas as leis actualizadas. Depois, por volta do meio-dia visito um cliente qualquer que tenha uma cantina ou um restaurante por perto para que me ofereça o almoço. Ao princípio da tarde, faço os recados de rua, como visitar os correios e alguns serviços administrativos, pois quando me cruzo com conhecidos, parte deles já beberam um ou outro copo, acabando por se revelarem mais soltos de língua quando me elogiam, aos quais eu respondo com risinhos falsamente envergonhados, para mais tarde coçar o peito distraidamente e deixar a minha blusa mostrar um pouco mais de mim. A meio da tarde costumo receber visitas e clientes. Obviamente é o meu marido quem me vai levar aos escritório e buscar, depois de transportar os miúdos.
E sou feliz assim. Toda a gente me conhece e me reconhece mérito, que é para o que vivo. Nas instituições bancárias tenho prioridade de atendimento, assim como nos tribunais e noutros gabinetes estatais. Toda a gente me chama doutora e amo isso, doutora, a boa, a bem-sucedida.
Contudo, ninguém sabe quais os meus pontos fracos. Eu mesma, na maioria das vezes, esqueço-me deles. Mas eles estão sempre presentes. Ouço-os principalmente quando me deito no silêncio da noite e agudizam-se quando os sons desaparecem e as luzes se apagam. E aí cedo às minhas tentações, de ser agarrada, adorada e trincada por muitos Jaimes, os verdadeiros machos, aqueles que vivem porque têm de viver, não porque têm algo de bom para fazer. Desejo, afinal, que eles me tratem como um deles, como ninguém, como se eu fosse lixo e indiferente a toda a gente.
E no dia seguinte acordo e volto a insistir que sou boa, porque sou eu.

5 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Mais um protótipo da nossa sociedade:uma Sra. Dra. armada em boa...
Adorei!

helena disse...

Já comecei a odiar a narradora. Da última vez que isso me aconteceu, adorei o livro! Bom fim de semana.

Tomé Baptista disse...

...Engraçado,esta personagem faz-me lembrar alguem...veremos o k aí vem,continua miudo :)

Tomé Baptista disse...

Engraçado,esta personagem faz-me lembrar alguém...vejamos o k aí vem,continua miudo :)

Fernanda R-Mesquita disse...

Ahaha, quantas pessoas nos fazem lembrar esta personagem... o mundo esta repleto delas. Vale a pena o tempo que paro aqui. Contiuem. Vou continuar a ler.