20/12/2012

CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


CRÓNICAS DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS


JAIME – PARTE II

Malditas frinchas das persianas. Um dia tenho de arranjá-las. Odeio-as sempre que o sol ilumina este quarto bolorento, mas ao longo do dia vou esquecendo que elas existem, até à alvorada seguinte, quando volto a insultá-las. É que se torna complicado ouvir a mulher a levantar-se e a berrar com os miúdos para irem para escola, assim como todo o alvoroço quando mais do que uma criança se encontra no mesmo espaço. Seria mais fácil acordar quando todos já tivessem partido. Mas não, tenho de chupar com eles.
Mas quando a porta bate fico muito mais satisfeito. A mulher leva os putos à escola e depois vai fazer umas horas na casa de um doutor qualquer. Dá para ligar a televisão nas alturas, vestir-me sem ter ninguém que me mande tomar banho, coçar todas as partes do meu corpo sem ter de justificar que não aguento mais a comichão, arrotar e rir alto das piadas daquele senhor de óculos coloridos que dá na televisão.
É assim que se passa metade da minha manhã. A outra é no café. Hoje é segunda-feira e ontem houve jogo grande da liga nacional. Mal posso esperar para enfrentar o Armando, dizendo-lhe que a equipa dele não vale um chavo. Desculpar-se-á com os árbitros, mas quem se importa? O que interessa é ver o gajo vermelho de raiva.
Desço as escadas e reparado que as calças de fato de treino têm uma nódoa. Que se lixe, também não vou a nenhum baile. Quando abro a porta da entrada dou de caras com a carteira. Sorrio-lhe mas ignora-me. Mete as cartas à pressa nas caixas dos meus vizinhos e empurra-me uma contra o peito. Agradeço e ela vira-me as costas. Olho-a até desaparecer de vista e fantasio. Acaba o sonho e espreito a carta. Merda! É da Segurança Social.
Cerro os dentes e rasgo o envelope como se tivesse a esventrar o meu pior inimigo. Merda! Tenho de lá ir urgentemente.
Em vinte minutos chego às instalações do órgão público que vos suga. Olho a fila. Merda!, só gente. Encontro o meu primo Isaac e a minha sobrinha Sofia. Ainda me cruzo com o Zé, a Flora, o Adolfo e o Filipe. Tudo gente boa. Tenho de esperar quase duas horas por entre insultos e pensamentos de raiva. E finalmente sou atendido. É uma mulher de óculos de meia-idade que está do outro lado do guiché. Já a apanhei por outras ocasiões e a experiência não correu lá muito bem. Ela faz-me umas perguntas e eu respondo, evitando dar detalhes. Explico que ninguém me dá emprego, juro pela saúde dos meus filhos que a minha mulher tem dores crónicas, mas que o raio dos médicos não lhe passam um atestado, e que vivemos na miséria. Merda! Ela diz-me que vou perder mais de 50 Euros por mês.
Depois de protestar, enfio as mãos nos bolsos e regresso ao bairro. Como fumei os dois últimos cigarros pelo caminho, paro no café. Reparo que ainda não são 14H00. Maravilha! Ainda dá tempo para beber umas cervejolas antes de a mulher chegar para me azucrinar o cérebro. Pode ser que o Armando ainda lá esteja.



2 comentários:

Guiomar Ricardo disse...

Excelente!
Retrato fidedigno dos moradores daquele bairro social(Biquinha)e, provavelmente,de muitos outros espalhados por esse Portugal fora...
Estou a gostar imenso!Continua,Vasco.

Ângelo Marques disse...

Muito bom mesmo até parece fácil...