CRÓNICAS
DE UM PORTUGAL DEMASIADO PORTUGUÊS
JAIME
– PARTE II
Malditas
frinchas das persianas. Um dia tenho de arranjá-las. Odeio-as sempre
que o sol ilumina este quarto bolorento, mas ao longo do dia vou
esquecendo que elas existem, até à alvorada seguinte, quando volto
a insultá-las. É que se torna complicado ouvir a mulher a
levantar-se e a berrar com os miúdos para irem para escola, assim
como todo o alvoroço quando mais do que uma criança se encontra no
mesmo espaço. Seria mais fácil acordar quando todos já tivessem
partido. Mas não, tenho de chupar com eles.
Mas
quando a porta bate fico muito mais satisfeito. A mulher leva os
putos à escola e depois vai fazer umas horas na casa de um doutor
qualquer. Dá para ligar a televisão nas alturas, vestir-me sem ter
ninguém que me mande tomar banho, coçar todas as partes do meu
corpo sem ter de justificar que não aguento mais a comichão,
arrotar e rir alto das piadas daquele senhor de óculos coloridos que
dá na televisão.
É
assim que se passa metade da minha manhã. A outra é no café. Hoje
é segunda-feira e ontem houve jogo grande da liga nacional. Mal
posso esperar para enfrentar o Armando, dizendo-lhe que a equipa dele
não vale um chavo. Desculpar-se-á com os árbitros, mas quem se
importa? O que interessa é ver o gajo vermelho de raiva.
Desço
as escadas e reparado que as calças de fato de treino têm uma
nódoa. Que se lixe, também não vou a nenhum baile. Quando abro a
porta da entrada dou de caras com a carteira. Sorrio-lhe mas
ignora-me. Mete as cartas à pressa nas caixas dos meus vizinhos e
empurra-me uma contra o peito. Agradeço e ela vira-me as costas.
Olho-a até desaparecer de vista e fantasio. Acaba o sonho e espreito
a carta. Merda! É da
Segurança Social.
Cerro
os dentes e rasgo o envelope como se tivesse a esventrar o meu pior
inimigo. Merda! Tenho
de lá ir urgentemente.
Em
vinte minutos chego às instalações do órgão público que vos
suga. Olho a fila. Merda!, só
gente. Encontro o meu primo Isaac e a minha sobrinha Sofia. Ainda me
cruzo com o Zé, a Flora, o Adolfo e o Filipe. Tudo gente boa. Tenho
de esperar quase duas horas por entre insultos e pensamentos de
raiva. E finalmente sou atendido. É uma mulher de óculos de
meia-idade que está do outro lado do guiché. Já a apanhei por
outras ocasiões e a experiência não correu lá muito bem. Ela
faz-me umas perguntas e eu respondo, evitando dar detalhes. Explico
que ninguém me dá emprego, juro pela saúde dos meus filhos que a
minha mulher tem dores crónicas, mas que o raio dos médicos não
lhe passam um atestado, e que vivemos na miséria. Merda!
Ela diz-me que vou perder mais
de 50 Euros por mês.
Depois
de protestar, enfio as mãos nos bolsos e regresso ao bairro. Como
fumei os dois últimos cigarros pelo caminho, paro no café. Reparo
que ainda não são 14H00. Maravilha! Ainda
dá tempo para beber umas cervejolas antes de a mulher chegar para me
azucrinar o cérebro. Pode ser que o Armando ainda lá esteja.
2 comentários:
Excelente!
Retrato fidedigno dos moradores daquele bairro social(Biquinha)e, provavelmente,de muitos outros espalhados por esse Portugal fora...
Estou a gostar imenso!Continua,Vasco.
Muito bom mesmo até parece fácil...
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